Diante da maior crise hídrica dos
últimos 91 anos, a escassez de chuva acende os holofotes para anunciar o drama
do apagão.
De acordo com o Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS), algumas
hidrelétricas já estão quase operando na zona 4, a 'zona de lama' dos
reservatórios, como a de Ilha Solteira, no Rio Paraná. Triste teatro anunciado
num país onde chuva e geração de energia caminham juntas. Segundo dados do
Balanço Energético Nacional de 2021, divulgado pela Empresa de Pesquisa
Energética (EPE), cerca de 65% da nossa energia elétrica é gerada por
aproveitamento hidráulico.
Neste momento delicado, o Governo Federal, dono da EPE, se limita a sobretaxar
a energia consumida reeditando a bandeira tarifária extra, a bandeira da
'Escassez Hídrica'. Pagaremos, em média, 7% a mais pela energia! O Tribunal
de Contas da União (TCU) questiona desde 2018 a efetividade desta
bandeirada que não desperta nos consumidores a necessidade de consumo
consciente, como alardeia o Governo. A medida é melhor compreendida pelo setor
elétrico, que se beneficia da bandeirada para compensar perdas da
escassez hídrica e antecipar receitas.
Para os não negacionistas do aquecimento global, a escassez de chuva é agravada
pela falta de manejo e de uso sustentável dos recursos naturais. Direto ao
ponto, todo agente que degrada o meio ambiente, independentemente de intenção
ou necessidade, contribui para as prolongadas estiagens. Com foco na gestão
ambiental, o setor elétrico participa desta sombria realidade da falta de chuva
simultaneamente como algoz e vítima. O setor coleciona casos de destrato
ambiental que se somam e se avolumam ao longo dos anos. Sem adentrar no mérito,
pois não se trata de individualizar responsáveis, um caso ilustra a questão.
Em 2008, início do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), foram leiloadas
e concedidas a consórcios distintos as hidrelétricas de Jirau e Santo
Antônio, ambas no rio Madeira em Rondônia. Considerando que Jirau está a
montante, a cerca de 110 km da usina Santo Antônio, o potencial de
aproveitamento hidrelétrico em Santo Antônio é parcialmente capturado por
Jirau. Para contornar esta redução causada por Jirau, o consórcio Santo
Antônio obteve, após o leilão, autorização para elevar a cota (altura
limite de operação) de seu reservatório de 70,5 para 71,3 m.
Defendendo seus interesses, o consórcio Santo Antônio argumenta que a
licença de operação está condicionada à reprodução e preservação dos peixes da
região. Logo, elevar a cota manteria a vazão projetada do sistema, evitando
riscos à transposição e desova de peixes e, também, danos às turbinas. Ocorre
que, em cadeia reflexa, elevar Santo Antônio diminui a altura da queda d'água
aproveitável por Jirau.
Assim e de longa data, os consórcios disputam o potencial do rio
Madeira confinado numa delicada equação econômico-financeira do negócio. É um
cabo de guerra legítimo e necessário para propiciar confiança de investimentos
e segurança jurídica no Brasil, sem dúvida. Mas, sendo o potencial do rio
finito e pré-calculado, esta disputa travada em ambiente não cooperativo é
estritamente alocativa/distributiva entre as quase-rendas administradas em
cada consórcio.
A despeito do vencedor, nesta batalha de Pirro contabilizam-se perdas e
perdedores. De fato, o relevo da região indica que na época de cheia a elevação
da cota em 0,8 m encobre área adicional de 3% do Parque Nacional Mapinguari.
Este evidente impacto antrópico fragiliza o ambiente amazônico e desagrega o
modo de vida da população ribeirinha, de maioria indígena. Historicamente, a
construção de barragens imensas e os embates técnico-políticos em torno da
operação de usinas não são exceção no país. Tanto a criação do Movimento dos
Atingidos por Barragens em 1979, como a sua atuação combativa que perdura até
hoje, falam por si.
Como assertiva a ser defendida neste artigo de opinião, esta realidade
conflituosa tem origem na estrutura organizacional e na dinâmica do setor
elétrico brasileiro, que falha ao não salvaguardar o licenciamento ambiental de
interferências deletérias ao uso e manejo sustentável. Edificando tal asserção,
compor demandas díspares e conflitantes em torno do trinômio
desenvolvimento-conservação-preservação requer do setor uma organização
sistêmica capaz de lidar com a complexidade inerente da realidade, que realize
ações voltadas a orquestrar interesses e necessidades interdependentes,
variáveis no tempo e no espaço.
Idealmente, o licenciamento ambiental deveria ser alçado à condição de arranjo
institucional para todos os fins de fato e de direito e ocupar lugar próprio,
corporificado, dentro da estrutura do setor elétrico. Hoje, o licenciamento é
disciplinado como um procedimento técnico-jurídico permanente conduzido por
diversos interessados/envolvidos.
Neste sentido, o Projeto de Lei do Senado n.168/2018 (ainda em discussão na
Casa) intenta positivar uma Lei Geral de Licenciamento Ambiental (marco
regulatório que vinculará a todos os níveis da federação) para conferir maior
segurança jurídica, eficiência e celeridade ao tema. Embora não integre
atualmente um código jurídico unificado, a teoria institucionalista advoga que o
licenciamento é uma verdadeira instituição, visto que normatiza um procedimento
(estável, em tese) e condutas a serem seguidas por todos os stakeholders. E, ao
corporificar uma instituição, o licenciamento fica predisposto a ser alvo de
mudança político-institucional.
Ocorre que, no longo aguardo da tramitação do PLS n.168/2018, o licenciamento
ambiental vive em constante fricção e crise de identidade. Até a implantação e
início de operação das usinas, o licenciamento integra a espinha dorsal do
empreendimento e produz norma cogente para todos, comportando-se virtualmente
como se fosse um arranjo institucional. Porém, após o início da operação a
situação é outra.
O licenciamento se despe de sua pretensa posição como integrante da estrutura
organizacional do setor e segue alijado como um (mero) procedimento permanente,
flexível e flexibilizado que reúne agentes e atores específicos, os quais são
determinados conforme as características do empreendimento para o atingimento
daqueles condicionantes ambientais impostos antes da operação iniciar. Na
prática, o licenciamento vive (ou sobrevive) ao longo da operação como um
'arranjo procedimental' não ocupante de posição certa e definida na organização
do setor elétrico. Isto o faz menos resistente a pressões de espectro não
ambiental, talvez por conveniência.
Neste tema e para defesa da ideia-força deste texto, convém rememorar a atual
organização do setor elétrico e o papel do Estado Brasileiro. O Programa
Nacional de Desestatização articulou o setor como uma extensa rede de política
pública capilarizada, composta por entes públicos, privados e sociedade civil.
No bojo da reforma do Estado brasileiro, o Executivo Federal criou a Agência
Nacional de Energia Elétrica (ANEEL) em 1996, consolidando um modelo fundado em
regulação e coordenação em matéria de política energética que já se desenhava
anos antes.
Desde então, o setor se organiza como uma rede mista e policêntrica, pautada
pela interação positivista/formalista que separa competências e
responsabilidades entre os agentes. Numa espécie de associativismo patrocinado
conjuntamente pelo Estado e pelo capital privado, o setor compõe interesses nos
níveis nacional e subnacional e nos eixos vertical e horizontal.
A rede é mista porque mantém um núcleo centralizador estrategista atuando em
paralelo ao arcabouço regulatório descentralizado. Ocupando o núcleo, a União
detém como prerrogativa e política de Estado a responsabilidade pela condução
da política energética nacional, prática que remonta à datada Era Vargas. No
mérito, dois fatores contribuem para isto: os imperativos estratégicos e de
segurança nacional e a necessidade de suprir energia para todo o território, o
que impõe redes de geração e transmissão integrativas, unindo fronteiras supra
e subnacionais entre agentes participantes.
Resumidamente, no nível estratégico-gerencial o planejamento do setor é
conduzido por uma rede vertical coordenada pelo Executivo Federal, que separa
as atribuições do órgão regulador, do operador nacional do sistema, do comitê
gestor, da empresa de pesquisa energética e de outros agentes, todos sob a
tutela do Poder concedente centralizado no Ministério de Minas e Energia.
A seu turno e em razão de eficiência, escala e capacidade requeridas no nível
técnico-operacional, as atividades de geração, comercialização (administrada
pela Câmara de Comercialização de Energia Elétrica - CCEE), transmissão e
distribuição de energia são descentralizadas e desconcentradas. Uma extensa
rede interorganizacional horizontalizada participa destas atividades,
atribuídas a empresas públicas e privadas independentes que atuam de forma
mediada pelos diversos órgãos e entidades do Poder concedente.
Argumenta-se que este modelo misto enxuga a participação direta do Estado na
operação e nos investimentos, possibilitando ao corpo burocrático atuar com
maior empenho nas atividades de planejamento, regulação e coordenação. A
prática, porém, destoa do argumento no que respeita ao meio ambiente. Leiloar
uma usina para, depois, permitir a elevação do reservatório na tentativa de
manter a equação econômico-financeira do negócio perturba o desempenho conjunto
e coordenado das atividades citadas e, por extensão, todo o compromisso firmado
nas três licenças ambientais previstas na legislação (prévia, de instalação e de
operação).
No cerne da questão, esta configuração mista favorece cenários de conflito
agente-principal. A assimetria de informação explorada e capitalizada
pelos consórcios fragiliza a capacidade estatal em coordenar
diálogos, firmar pactos e ajustar compromissos permanentes em função dos
interesses e necessidades ambientais.
Em torno do licenciamento se estabelecem audiências públicas, fóruns
(informais) e uma arena permanente onde interesses econômicos, financeiros,
legais, ambientais, de engenharia e diversos outros confluem e são objeto de
deliberação, escrutínio e composição. Todavia, considerar o licenciamento como
um 'arranjo procedimental', condicionado ao ajustamento controlado de condutas
de maneira pulverizada e compartilhada pelos diversos atores e agentes dentro
desta complexa rede de política pública em que se estrutura o setor elétrico,
não vem demonstrando ser modelo acertado ao atingimento de resultados
satisfatórios e consistentes.
O caso Jirau/Santo Antônio é eloquente para alertar que o licenciamento é
sensível e cede a interesses não ambientais e tem servido reiteradamente como
instrumento para acomodar tanto falhas de mercado quanto falhas governamentais,
em franca degeneração de sua finalidade essencial.
A realidade mostra ser de efetividade limitada o Estado Brasileiro erguer
instituições e segregar competências entre agentes dentro de uma estrutura
organizacional mista e complexa. Isto porque a atual configuração do
licenciamento ambiental funciona como um cavalo de Troia que abre um flanco de
frouxidão e ruptura, de dentro para fora, das garantias e seguranças que a
estrutura concebida para o setor deveria ser capaz de proporcionar.
Esta afirmação decorre do fato do licenciamento ser, quase inexoravelmente,
judicializado por carecer de salvaguardas estruturantes intraorganizacionais
que deveriam ser patrocinadas pelo Estado. Há muita diferença considerar o
licenciamento como arranjo institucional legalmente constituído ou como um
(mero) procedimento técnico-jurídico. Não se trata de preciosismo acadêmico ou
retórica vazia.
Assumindo, ab initio, que o licenciamento tende a ser judicializado, os consórcios usam
com perspicácia a estatística a seu favor. Esta conduta legítima dos consórcios transforma
a judicialização ambiental em parte visceral da intrincada equação
econômico-financeira que rege os empreendimentos em energia. Isto abre um
indigesto precedente de reacomodação do embate técnico-político onde, em regra,
o Estado cede à pressão de interesses econômico-financeiros travestidos como
interesses ambientais.
Em suma, os agentes privados do setor elétrico são parte de uma estrutura
organizacional articulada e capitaneada pelo Estado Brasileiro incapaz de usar
e manejar adequadamente os recursos hídricos. O setor é, assim, algoz e vítima
da falta de chuvas. Salta aos olhos que a capacidade estatal para o
licenciamento ambiental verte, feito água, dos meandros desta estrutura
organizacional dedicada à política energética. Os peixes se articulam, cada um
a seu modo e em seus espaços próprios, para furar a rede de política pública.
Evitar a reprodução do comportamento oportunista destes peixes é papel do
Estado, na qualidade de coordenador-regulador. Em respeito ao meio ambiente, à
população ribeirinha e ao desenvolvimento humano sustentável, urge corporificar
e conferir mais assertividade ao licenciamento ambiental. Antes da próxima
cheia do rio Madeira é preciso remendar e fortalecer a rede.
Marcelo Barbosa Araujo e Fernando
de S. Coelho, O Estado de S. Paulo
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