Devido processo legal das eleições administrativas e o princípio da anualidade
O Direito Administrativo dos agentes públicos no Brasil
negligencia a extraordinária variedade das formas de provimento de cargos
públicos administrativos.
De modo binário, limita-se a referir o artigo 37, incisos II e V, da
Constituição Federal, para resumir as formas de provimento dos cargos públicos
na dualidade: 1) cargos efetivos (cargos de provimento vinculado, exigentes de
prévio concurso público); 2) cargos em comissão (cargos de provimento
discricionário unilateral, de livre nomeação e exoneração). Essa simplicidade é
enganosa.
Na própria Constituição Federal podem ser colhidos exemplos variados de:
3) Cargos administrativos de provimento compartilhado, condicionados à
aprovação parlamentar, porém de indicação livre pelo Poder Executivo (v.g.,
presidente e diretores do Banco Central, artigo 52, III, "d", da CF,
cargos de livre escolha, mas sujeitos a aprovação do Senado);
4) Cargos administrativos de provimento compartilhado, condicionados à
aprovação parlamentar, de indicação limitada por listas corporativas prévias
(v.g., ministros dos Tribunais de Contas de escolha presidencial a partir de
listas de auditores e membros do Ministério Público junto ao tribunal,
indicados em lista tríplice do TCU, segundo os critérios de antiguidade e
merecimento, e sujeitos a aprovação do Senado - artigo73, §2º, I, e artigo 52,
III, "b", da CF);
5) Cargos administrativos de provimento unilateral, sem exigência de aprovação
ou corresponsabilidade parlamentar, mas de indicação limitada por listas
corporativas prévias (v.g. escolha pelos governadores do procurador-geral do
Ministério Público dos estados e o do Distrito Federal e Territórios, observada
lista tríplice formada dentre integrantes da carreira, apresentada pelo
Ministério Público (artigo 128, §3º, da CF);
6) Cargos administrativos eletivos, de indicação corporativa singular (sem
lista prévia), nomeados pelo Poder Executivo, sujeitos a aprovação parlamentar
(v.g. membros do Conselho Nacional de Justiça, escolhidos e indicados por STJ,
TST, STF, PGR, Conselho Federal da OAB, entre outros, ex vi artigo 103-B da CF);
7) Cargos administrativos eletivos de escolha exclusiva (v.g. ministros dos
Tribunais de Contas da União escolhidos pelo Congresso Nacional, artigo 73,
§2º, II, da CF; presidentes da Câmara e do Senado, escolhidos por seus pares,
com eminentes funções administrativas, artigo 57, §4º, da CF; presidente dos
Tribunais de Justiça Estaduais, escolhidos por seus pares, no âmbito da
autonomia administrativa dos tribunais, artigo 99, caput, da CF);
8) Cargos administrativos de provimento automático ou provimento nato (v.g. o
presidente eleito do Supremo Tribunal Federal é automaticamente o presidente do
Conselho Nacional de Justiça, artigo 103-B, §1º, da CF).
Esse inventário de oito tipos não pretende ser exaustivo. Entretanto, a sua
referência basta para demonstrar o irrealismo e o simplismo da divisão
dicotômica das formas de provimento dos cargos administrativos e dos cargos
político-administrativos em cargos de provimento vinculado (efetivos) ou de
livre provimento e livre exoneração (cargos em comissão). A própria voz
"livre exoneração" é descaracterizada por diversas normas que
asseguram estabilidade provisória a cargos administrativos de provimento
discricionário unilateral ou de provimento discricionário compartilhado (v.g.
diretores de agências reguladoras, Lei 13.848/2019, e presidente e diretores do
Banco Central, LC 179/2021, entre outros).
Tratei do tema dos cargos de provimento compartilhado em artigo anterior, pois
a questão oferecia interesse no tópico do controle do nepotismo nos cargos
político-administrativos [1]. Porém, os cargos administrativos eletivos
permaneceram sem atenção especial. Em seu âmbito ressoa a questão sobre o modo
como se regulam e desenvolvem as eleições administrativas, matéria sobre a qual
há absoluto silêncio doutrinário.
Quais são os princípios regentes das eleições administrativas? Qual a interface
dessas eleições com as eleições gerais na arquitetura da separação dos poderes?
Pode haver alteração das regras da eleição administrativa em qualquer momento
antes da deliberação ou deve-se aplicar o princípio da anualidade, previsto no
artigo 16 da Constituição, para reger também os processos eleitorais destinados
ao provimento dos cargos administrativos e político-administrativos? Existe um
Direito Administrativo eleitoral ou um devido processo administrativo eleitoral?
Direito Administrativo eleitoral e Direito Eleitoral administrativo
No direito eleitoral comum, voltado a regular a escolha por sufrágio universal
dos representantes do povo que integrarão o Poder Legislativo e a chefia do
Poder Executivo, há um segmento de normas que rege a atuação dos órgãos de
fiscalização das eleições e dos órgãos administrativos da Justiça Eleitoral.
Esse conjunto normativo pode ser designado de Direito Eleitoral administrativo
(em sentido jurídico-positivo), instrumental para as eleições gerais, pois rege
as medidas administrativas preparatórias das eleições e de seu regular
desenvolvimento (fiscalização dos registros eleitorais, fiscalização da
prestação das contas eleitorais, preparação da logística das eleições, entre
outros temas). O Direito Eleitoral administrativo é auxiliar do Direito Eleitoral
material e processual.
Para o Direito Eleitoral material e processual, mas também para o Direito
Eleitoral administrativo, aplica-se o artigo 16 da Constituição Federal, com a
redação da EC4/1993, que dispõe:
"Artigo 16 - A lei que alterar o processo eleitoral entrará em vigor na
data de sua publicação, não se aplicando à eleição que ocorra até um ano da
data de sua vigência".
O princípio da anterioridade da lei eleitoral, previsto no artigo 16 da
Constituição, é mais abrangente do que aparenta a sua interpretação literal.
Emendas constitucionais que alterem ou afetem as eleições também devem ser
aprovadas até um ano antes das eleições para surtirem efeitos na data de sua
publicação, ou terão a sua eficácia no tempo diferida, sendo aplicáveis apenas
nas eleições seguintes. Por igual, instruções normativas da Justiça Eleitoral,
de natureza administrativa ou não, mas que interfiram no exercício dos direitos
eleitorais, devem respeitar o princípio da anterioridade ou anualidade,
preservando a estabilidade das regras das eleições.
Segundo o STF, "o artigo 16 representa garantia individual do
cidadão-eleitor", "a quem assiste o direito de receber, do Estado, o
necessário grau de segurança e de certeza jurídicas contra alterações abruptas
das regras inerentes à disputa eleitoral" (ADI 3.345, rel. min. Celso de
Mello).
Também decidiu a corte que o princípio da anualidade eleitoral contém, em si,
"elementos que o caracterizam como uma garantia fundamental oponível até
mesmo à atividade do legislador constituinte derivado, nos termos dos arts. 5º,
§ 2º, e 60, § 4º, IV", a burla ao que contido no artigo 16 ainda afronta
os direitos individuais da segurança jurídica (CF, artigo 5º, caput) e do
devido processo legal (CF, artigo 5º, LIV) (ADI 3.685, rel. min. Ellen Gracie,
j. 22-3-2006, P, DJ de 10/8/2006).
A aplicação do princípio da anterioridade eleitoral, decidiu a corte, "não
depende de considerações sobre a moralidade da legislação. O artigo 16 é uma
barreira objetiva contra abusos e desvios da maioria (...). A jurisdição
constitucional cumpre a sua função quando aplica rigorosamente, sem
subterfúgios calcados em considerações subjetivas de moralidade, o princípio da
anterioridade eleitoral previsto no artigo 16 da Constituição, pois essa norma
constitui uma garantia da minoria, portanto, uma barreira contra a atuação
sempre ameaçadora da maioria" (RE 633703 MG, rel. min. Gilmar Mendes, j.
23/3/2011).
Essa garantia fundamental - assim como os direitos fundamentais - possui
eficácia abrangente, sendo aplicável a todas as normas legais ou
administrativas que possam afetar processos eleitorais. E, mais, abrange também
as chamadas "viragens jurisprudenciais".
Conforme assentou o STF, no RE 637.485, "no âmbito eleitoral, a segurança
jurídica assume a sua face de princípio da confiança para proteger a
estabilização das expectativas de todos aqueles que de alguma forma participam
dos prélios eleitorais. A importância fundamental do princípio da segurança
jurídica para regular transcurso dos processos eleitorais está plasmada no
princípio da anterioridade eleitoral positivado no artigo 16 da Constituição.
(...) Em razão do caráter especialmente peculiar dos atos judiciais emanados do
Tribunal Superior Eleitoral, os quais regem normativamente todo o processo
eleitoral, é razoável concluir que a Constituição também alberga uma norma,
ainda que implícita, que traduz o postulado da segurança jurídica como
princípio da anterioridade ou anualidade em relação à alteração da
jurisprudência do TSE. Assim, as decisões do Tribunal Superior Eleitoral que,
no curso do pleito eleitoral (ou logo após o seu encerramento), impliquem
mudança de jurisprudência (e dessa forma repercutam sobre a segurança
jurídica), não têm aplicabilidade imediata ao caso concreto e somente terão
eficácia sobre outros casos no pleito eleitoral posterior" (RE 637485,
rel. min. Gilmar Mendes, Pleno, j. 1/8/2012).
Compreendida com essa largueza a garantia da anualidade eleitoral, a pergunta
que resta é sobre a sua aplicabilidade ou não a normas regentes de eleições
administrativas ou internas. Em termos interrogativos diretos, a questão é a
seguinte: aplica-se a eficácia diferida a normas e decisões administrativas que
alterem processos administrativos de eleição a menos de um ano da data do
sufrágio interno?
O sufrágio restrito como forma de provimento de cargos administrativos ou a
elaboração de listas corporativas para definição externa posterior dos
titulares de cargos administrativos de direção, sendo a capacidade eleitoral
ativa reservada apenas a integrantes do colegiado público, não é regido pelo
Direito Eleitoral administrativo. É disciplinado pelo Direito Administrativo
eleitoral, subdomínio do Direito da organização administrativa, voltado a
dispor sobre a forma de renovação da direção de órgãos colegiais (órgãos
pluripessoais). Trata-se de matéria geralmente contemplada em regimentos
internos elaborados no âmbito da autonomia administrativa reconhecida a órgãos
colegiais por previsão legal ou constitucional.
A matéria recebeu atenção renovada na administração dos tribunais a partir da
decisão do STF na ADI 3.976, da relatoria do ministro Edson Fachin, julgada em
25/6/2020, que declarou não recepcionado o artigo 102, da Lei Orgânica da
Magistratura Nacional (LC 35/79), norma que definia como elegíveis para os
cargos de direção dos tribunais apenas os juízes mais antigos, em número
correspondente ao dos cargos de direção, com mandato por dois anos, proibida a
reeleição. O STF não declarou inconstitucional a manutenção da regra da
antiguidade, mas homenageou a autonomia administrativa dos tribunais, o
autogoverno de cada corte para dispor, em regimento interno, sobre a matéria. O
próprio STF manteve a regra de antiguidade para a escolha de seu presidente,
regra consuetudinária, que reserva o cargo de presidente ao ministro mais
antigo que ainda não tenha exercido mandato regular de presidente da corte. O
vice-presidente do STF é, por essa razão, o segundo mais antigo, observado o
mesmo critério. Essa norma não escrita é respeitada, embora o artigo 12 do regimento
interno assegure a elegibilidade a todos os membros da corte, inclusive ao mais
novo ou recém-empossado.
O debate que possui relevo jurídico imediato não é a questão de mérito (saber
se é conveniente ou inconveniente a ampliação da elegibilidade ou capacidade
eleitoral passiva nos colegiados dos tribunais). Há para a ampliação defensores
com vozes legítimas, que sustentam o reforço à democraticidade do processo
eleitoral administrativo, e críticos igualmente ponderados, que temem o aumento
da politização e fratura interna dos colegiados. A questão jurídica que demanda
atenção é a de saber a eficácia no tempo de eventual alteração das regras
eleitorais internas.
Devido processo administrativo eleitoral
Os processos eleitorais administrativos não são relevantes apenas para a
economia interna dos órgãos colegiais. Seus efeitos podem repercutir no
funcionamento de outros poderes do Estado. A eleição interna do presidente da
Câmara define o sucessor imediato do presidente da República, na ausência do vice-presidente
(CF, artigo 80); a eleição do presidente do STF, o quarto nome na cadeia
sucessória ou de substituição eventual do presidente da República.
Nos estados, a eleição interna para presidente de Tribunal de Justiça define o
terceiro nome para substituição eventual dos governadores de Estado. Algo que
parece remoto, mas que já ocorreu várias vezes (por exemplo, na Bahia, em 1994,
o desembargador Ruy Dias Trindade assumiu o governo do estado por um mês, entre
2 de abril a 2 de maio).
Ora, se o processo eleitoral comum para definição do governador do estado, ou
do presidente da República, exige previsibilidade e estabilidade, com respeito
à anualidade prevista no artigo 16 da Constituição, a fortiori as mesmas
exigências devem ser cumpridas nos processos eletivos internos que definam os
substitutos eventuais das referidas autoridades.
Sem regras cognoscíveis, confiáveis e calculáveis (para usar a terminologia de
Humberto Ávila), estabelecidas com antecipação aos processos eleitorais, não se
pode falar em segurança jurídica eleitoral no âmbito político e no âmbito
administrativo.
O processo eleitoral administrativo requer um fair procedure, máxime nos órgãos
de direção superior do Poder Legislativo e do Poder Judiciário, pois nestes os
dirigentes eleitos são convocados a desempenhar tríplice função - a de
representar um dos poderes do Estado, o de conduzir a administração superior do
órgão de direção que lhe incumbe e a de substituir, na linha sucessória, a
autoridade eletiva máxima do Poder Executivo.
Mais do que segurança quanto ao passado, a anualidade eleitoral oferece a
"certeza diacrônica", de que nos fala Gianmarco Gometz, requisito
essencial para o planejamento consciente da conduta no tempo [2]. Protege a
segurança jurídica contra as maiorias eletivas eventuais, compostas em períodos
de acirramento de disputas internas, e oferece previsibilidade a processos
eleitorais que podem ser alterados, mas devem ser aperfeiçoados com temperança
e respeito ao tempo.
[1] MODESTO, Paulo. Nepotismo em cargos político-administrativos, In:
MARQUES NETO, Floriano de Azevedo; ALMEIDA, Fernando Menezes de; NOHARA, Irene
Patrícia; MARRARA, Thiago. Direito e administração pública: estudos em
homenagem a Maria Sylvia Zanella Di Pietro. São Paulo: Atlas, 2013, p. 260-298
ou RBDP, n. 41, p. 952, abr./jun. 2013.
[2] GOMETZ, Gianmarco. La certeza jurídica como previsibilidad. Trad. Diego
Cruz e Diego Vecchi. Madrid: Marcial Pons, 2012, p. 214-215.
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