domingo, 24 de junho de 2018

MOMENTO DE UNIR ESFORÇOS E PLANEJAR


Para investir R$ 350 bilhões por ano, o Brasil precisa do Estado e da iniciativa privada juntos

A paralisação dos caminhoneiros expôs a fragilidade da matriz de transportes do país e reacendeu um debate que ganhará espaço na corrida presidencial: o papel do Estado, das estatais e dos bancos públicos na economia. Entre 2008 e 2014, os preços dos derivados de petróleo foram congelados, o que fez usinas de açucare álcool fecharem portas e levou a Petrobras a acumular prejuízos de US$ 45 bilhões c iniciara venda de alguns ativos, como nos setores petroquímico e de gás. A partir de 2016, no governo Temer, a estatal passou a reajustar diariamente os preços, o que trouxe imprevisibilidade à cadeia cie logística. Buscar um meio termo será essencial. Ainda mais que, para ampliar o volume de investimentos para 5% do Produto Interno Bruto (PIB), será preciso unir esforços do Estado e da iniciativa privada e reinserir o planejamento na economia e na infraestrutura.

“O Brasil precisa investir RS 350 bilhões de reais por ano para expandir sua infraestrutura, dos quais R$ 210 bilhões são apenas para dar conta da depreciação dos ativos. Só teremos isso com investimentos publico e privado e planejamento da economia, para não ficarmos superando gargalos pontuais”, destaca o presidente da Associação Brasileira da Infraestrutura c Indústrias de Base (Abdib), Venilton Tadini. “O Brasil precisa recuperar o planejamento da economia e ter uma ação coordenada do Estado com as empresas e precisa usar o setor de infraestrutura para a retomada”, afirma o economista Luiz Gonzaga Belluzzo, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

“O desafio será resolver os gargalos do passado c criar as condições para a infraestrutura do futuro, ainda mais integrada, com mais tecnologia, com carros elétricos e semáforos inteligentes, o que pode melhorar em 10% a 20% a eficiência”, diz Maurício Endo, da KPMG. Além da discussão do papel do Estado, o investimento privado será âncora essencial e deverá aumentar com concessões e Parcerias Público-Privadas (PPPs) em todas as esferas de governo, diante da crise fiscal.

O maior programa é comandado pelo governo federal e poderá ter impacto sobre a malha de transportes atual, melhorando um gargalo exposto na greve dos caminhoneiros, ao incentivaras ferrovias. “Se tirarmos o minério transportado pelas ferrovias, 80% das cargas no Brasil são transportadas pelo modal rodoviário", aponta Paulo Resende, coordenador de infraestrutura da Fundação Dom Cabral. A realidade poderá mudar. O governo trabalha para lançar até o início do segundo semestre o edital da Ferrovia Norte-Sul. Os editais da Ferrogrão e da Ferrovia de Integração Oeste-Leste (Fiol) também poderiam ser lançados neste ano.

Os leilões poderiam ocorrer entre o terceiro trimestre e o início do próximo ano, segundo especialistas. “Deverá haver disputa, com empresas russas e chinesas também participando”, afirma o secretário do Programa de Parcerias de Investimentos, Adalberto Vasconcelos. Para Resende, da Fundação Dom Cabral, se esses trechos forem arrematados pela iniciativa privada, a matriz de transportes poderá se modificar: as ferrovias poderiam responder por 32% do escoamento das cargas, hoje em 25%.

A União também trabalha para lançar novos lotes rodoviários ao mercado. Os dois mais adiantados são a Rodovia de Integração Sul (BR-101 /290/386/448 no Rio Grande do Sul), com 473 quilômetros e investimentos de R$ 8,5 bilhões, e a Rodovia BR-364/365, de Uberlândia (MG) a Jatai (GO), com 437 quilômetros e R$ 2 bilhões em investimentos. Os leilões podem ser feitos até o fim do ano, sendo liberados pelo TCU, estima Vasconcelos. Também se trabalha para lançar editais neste ano da BR-101 em Santa Catarina e da BR-153, devolvida pelo grupo Galvào.

Grandes ativos de rodovias também poderão trocar de mãos. Em novembro do ano passado, a Empresa de Planejamento e Logística (EPL), órgão estatal responsável pelo planejamento na área de transportes, assinou contrato com a IFC, braço financeiro do Banco Mundial, para realizar os estudos de viabilidade das rodovias federais que serão relicitadas: via Dutra, hoje nas mãos da CCR; a Concer - da Triunfo, que interliga o Rio de Janeiro a Juiz de Fora, em Minas Gerais; a CRT, no Estado do Rio de Janeiro, hoje sob administração da OAS, Carioca Christiani-Nielsen Engenharia, Construtora Queiroz Galvão e EIT - Empresa Industrial Técnica. “Estamos trabalhando para divulgar três editais c lançar um leilão neste ano”, afirma Vasconcelos.

Outra novidade é o fundo para desenvolvimento de projetos, criado pelo Ministério do Planejamento, com aporte de R$ 180 milhões, para atuar nas áreas de saneamento, mobilidade, resíduos sólidos e iluminação pública e ajudar prefeituras e Estados a elaborar seus projetos de concessão ou PPP. Em junho, deverá ser aberta chamada pública para 12 projetos em iluminação pública. No início do segundo semestre, deve ser aberta outra chamada para PPPs na área de saneamento, com destaque para companhias estaduais c investimentos em esgoto. Outros seis a doze estudos em mobilidade e saneamento também devem ter chamada pública aberta, diz o secretário de Planejamento de Infraestrutura do Ministério do Planejamento, Hailton Almeida.

Neste ano, concessões em óleo e gás poderão trazer negócios bilionários, aponta o advogado Carlos Frederico Bingemer, do BMA Advogados. Com o preço do petróleo acima de US$ 70 e a alta produtividade dos campos do pré-sal, as rodadas de partilha deverão reforçar o interesse de grandes petroleiras, estimuladas pela retirada da obrigatoriedade de a Petrobras ter 30% de todas as licitações na camada pré-sal.

No dia 7 de junho, a quarta rodada de leilão de partilha do pré-sal arrecadou R$ 3,15 bilhões. Dezesseis empresas foram habilitadas. Shell, Chevron, Petrogal, Equinor (ex-Statoil) e ExxonMobil estão entre os grupos estrangeiros vencedores de três das quatro áreas leiloadas.

Em março, o governo federal já havia realizado a décima quinta rodada de blocos de petróleo em áreas próximas à camada pré-sal. Mesmo com a retirada de dois blocos, o leilão arrecadou R$ 8 bilhões em bônus, um dos maiores volumes desde 1999. A americana Exxon Mobil arrematou oito áreas, seis como operadora, e desembolsará R$ 2,85 bilhões pelos ativos.

A parceria entre setor público e setor privado ainda poderá ganhar um incentivo com a entrada em vigor, dia 1 ° de junho, da Lei 13.303, conhecida como Estatuto das Estatais. Ela estabelece novo regime de contratação e estatutos que vetarão a presença e a indicação de conselheiros que tenham participado de campanha eleitoral nos últimos 36 meses ou sejam dirigentes de partido, sindicalistas ou parlamentares. Também começou a ser barrada a nomeação de parentes de políticos ou de pessoas em cargos no governo que impliquem conflito de interesse.

O novo regime de contratação passa a ser feito por chamadas públicas, que poderão ser usadas para venda de ativos, para formação de joint ventures em algum setor ou para adquirir algum equipamento que não tenha similar. Isso deverá propiciar mais flexibilidade às estatais, principalmente às que não têm capital aberto. “O regime de contratação fica muito mais flexível que a lei das licitações”, afirma Thiago Sombra, sócio do Mattos Filho Advogados.

Nesse contexto a regra pode facilitar processos de capitalização como o da Infraero, que o governo cogita vender seu controle para acionistas privados. “Isso dá condições de os ativos serem mais bem precificados e pode facilitar atração de acionistas minoritários, de venda de 10% a 20% ou aberturas de capitais", observa o secretário de Coordenação e Governança das Empresas Estatais do Ministério do Planejamento, Fernando Antônio Ribeiro Soares.

Financiar o déficit de infraestrutura significará não apenas manter o papel do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) como também incorporar o mercado de capitais na equação. Há novidades na área: chegaram há poucos dias no banco estatal dois pedidos de financiamento via project finance 100% puro, no qual os próprios recebíveis do empreendimento funcionam como garantia. Um pedido é de empresa do setor elétrico, segundo o Valor apurou com empresários.

As debêntures de infraestrutura também devem começar a ganhar espaço. O Pátria, que arrematou, no ano passado, uma rodovia concedida pelo Estado de São Paulo, concluiu em março uma emissão de debêntures no valor de R$ 1 bilhão, com demanda de 1,94 vez, sendo que os estrangeiros responderam por um quarto da alocação, cujo rendimento final ficou cm 7,75% ao ano mais a variação do IPCA.

Quatro grandes investidores estrangeiros que já tinham o Brasil na mira foram os principais compradores do papel. “O Pátria teve outras opções, mas buscou o mercado decapitais para financiar o projeto, o que mostra esse novo momento”, diz Edson Ogawa, responsável pela área de project finance do Santander.

Em paralelo, vê-se o avanço de novos players internacionais, acostumados a executar project finances com menos capital próprio do que é feito no Brasil e que chegam ao país tendo acesso a outras fontes de financiamento, como agências de fomento à exportação, bancos estrangeiros e fontes multilaterais. “O financiamento agora tende a ser mais caro sem o subsídio do BNDES c poderá ser repassado para as tarifas", destaca Tadini, da Abdib.“0 Brasil é um país de juros altos, o Banco Central poderá passar a ter peso maior sobre o financiamento de longo prazo, o que pode ser danoso", diz o economista Fernando Nogueira da Costa, professor do Instituto de Economia da Unicamp.

No rol das pendências regulatórias setoriais a serem desatadas, uma delas se refere à Eletrobras, maior empresa do setor elétrico, que detém cerca de 30,7% da capacidade de geração de energia elétrica e de 51,7% do sistema de transmissão do Brasil. O governo Temer defendia sua privatização a partir de uma pulverização de capital na B3. A resistência de parlamentares e do presidente da Câmara, Rodrigo Maia, fez a Medida Provisória 814, que dava sinal verde ao processo, caducar em Io de junho. Assim não haveria tempo hábil para a privatização neste ano.

A segunda pendência se refere à Lei 13.448, que completou um ano de existência em junho e trata da relicitação de ativos problemáticos da área de transporte, prevendo a devolução dos bens a partir do ressarcimento dos investimentos realizados. A legislação, que adota o inédito mecanismo de devolução amigável de ativos no setor de infraestrutura por meio de arbitragem, ainda aguarda regulação por meio de decreto.

Há duvidas se o valor dos investimentos feitos e não amortizados será ressarcido pelo valor contábil, pelo valor presente líquido ou pelo valor de mercado. A indefinição fez o Aeroporto de Viracopos pedir recuperação judicial. O setor de transportes teve uma má notícia no fim de fevereiro, quando a Medida Provisória (MP) 800, que tratava da ampliação dos prazos de duplicação de trechos rodoviários de cinco anos para 14 anos, não foi votada no Congresso. A MP era considerada importante pelos empresários porque, ao ampliar o prazo das obras, tornava as concessões de 2012 e 2013 menos deficitárias.

O desenho do setor de infraestrutura deverá passar por mudanças, reflexo da Operação Lava-Jato, que derrubou a barreira de entrada de grupos internacionais no país. Operadoras internacionais, novas construtoras nacionais e internacionais, fundos de private equity e fundos soberanos poderão ingressar no segmento. Neste ano, na disputa pela primeira concessão do governo de Minas Gerais, vencida pela EcoRodovias, os outros dois consórcios participantes indicavam essas mudanças. Em um deles, participava a Concremat, que teve 80% de seu capital adquirido pela gigante chinesa CCCC. A vitória do consórcio - se ocorresse - marcaria o ingresso de uma empresa chinesa na área de rodovias. “Isso é indicação importante para futuros leilões”, diz Ogawa, do Santander.
Por Roberto Rockmann, na Revista Valor Setorial



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