Estudo brasileiro
mostra como o coronavírus afeta o cérebro, causando de perda de memória a
depressão e ansiedade. Sintomas podem acometer mesmo quem teve quadro leve da
doença.
Problemas neurológicos estão
entre as complicações mais frequentes da covid-19 fora do sistema pulmonar e
afetam mais de 30% dos pacientes. Perda de memória, falta de concentração e
atenção, raciocínio lento, sonolência, fadiga excessiva, ansiedade, depressão,
dificuldades com linguagem e outros prejuízos cognitivos e cerebrais podem ser
efeitos da doença.
As conclusões são de um
estudo coordenado pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e pela
Universidade de São Paulo (USP) e publicado recentemente no prestigiado
periódico Proceedings of the National Academy of Sciences (PNAS). Os sintomas
costumam ser associados sobretudo a quadros graves, mas atingem também quem
teve quadros moderados ou leves da doença, aponta a publicação.
"A covid-19 é capaz de
modificar o cérebro e sua estrutura cortical com ou sem a presença do vírus no
cérebro. A doença é capaz de fazer isso", afirma Daniel Martins-de-Souza,
professor de bioquímica da Unicamp e um dos pesquisadores.
Nos casos em que o
coronavírus chega ao cérebro, infecta principalmente astrócitos — as células
cerebrais mais abundantes e responsáveis por sustentar e nutrir neurônios. Os
neurônios que se alimentam dos astrócitos infectados acabam tendo seu funcionamento
prejudicado ou morrendo. Os astrócitos são o principal local de infecção e,
possivelmente, de replicação do vírus no cérebro.
"Nem todo mundo com
sintoma neurológico teve o vírus no cérebro. Às vezes, o sintoma é advindo da
inflamação sistêmica por causa da doença", explica Martins-de-Souza.
"Os casos em que o vírus chega ao cérebro potencialmente podem ser mais
graves, mas não podemos afirmar isso com certeza", observa o biólogo,
doutor e pós-doutor em bioquímica pela Unicamp e com experiências de
pós-doutorado no Instituto Max Planck de Psiquiatria, na Alemanha, e na
Universidade de Cambridge, no Reino Unido.
Os pesquisadores continuarão
a acompanhar os pacientes do estudo, o que pode trazer mais respostas no
futuro, por exemplo, ao verificar se os efeitos neurológicos serão passageiros
ou duradouros. A pesquisa também encontrou indícios de correlação entre
covid-19 e neurodegeneração, mas os dados são preliminares. Ao continuar a
investigação, os estudiosos também querem determinar se o vírus causa
alterações semelhantes em outros órgãos, o que pode encurtar caminhos de
tratamento.
Estudo usou metodologia
diversificada
O grupo de 89 pesquisadores
da Unicamp e da USP usou ressonância magnética para comparar a estrutura
cerebral de 81 pessoas saudáveis à de 81 que tinham se infectado provavelmente
com a cepa original do coronavírus Sars-Cov-2 e estavam se recuperando de
quadros leves ou moderados de covid-19 há cerca de dois meses. "Em maior
ou menor grau, todos os infectados tiveram alterações cerebrais
significativas", comenta Martins-de-Souza.
Em alguns casos, os exames
revelaram atrofia na parte frontal do cérebro, área fundamental para o
raciocínio e a atenção e associada com ansiedade e depressão. "Os testes
demonstraram mais sintomas de depressão e ansiedade nesses pacientes e conseguimos
verificar que não tinha a ver apenas com o fato de estarmos em uma
pandemia."
Parte dos que tiveram a
doença também foi submetida a testes de funções cognitivas e teve desempenho
pior que os não contaminados. O estudo também analisou a estrutura cerebral de
26 pacientes que morreram de covid-19 e encontrou danos severos em cinco deles.
Apenas nos falecidos foi possível identificar ou não a presença do vírus nesse
órgão.
Para Pâmela Billig Mello
Carpe, neurocientista da área de neurobiologia da aprendizagem e memória que
não participou do estudo, um ponto importante do trabalho foi usar diferentes
métodos de pesquisa. Por isso, a professora associada da Universidade Federal
do Pampa (Unipampa) diz que "o conjunto de resultados permitiu chegar a
uma conclusão mais precisa e, sem dúvida, contribuiu para a ciência mundial
ampliar a compreensão da fisiopatologia da doença".
Pioneirismo brasileiro
A pesquisa da Unicamp e da
USP foi financiada principalmente pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado
de São Paulo (Fapesp) e durou cerca de um ano e meio. Os trabalhos começaram
quando ainda pensava-se que a covid-19 era uma enfermidade apenas respiratória.
Os pacientes analisados foram infectados pelo coronavírus entre março e julho
de 2020 e, em média, tinham tido a doença há dois meses.
"O que nos despertou
esse interesse em particular foi o fato de os pacientes apresentarem perda de
olfato, um mecanismo mediado pelo cérebro. Isso nos fez pensar que poderia ter
alguma implicação cerebral", conta Martins-de-Souza.
Antes de saírem no PNAS, os
resultados da pesquisa foram divulgados, em outubro de 2020, como preprint,
espécie de prévia do estudo ainda sem revisão por pares, antes de ser submetido
para publicação num periódico científico. No entanto, a pesquisa só foi
publicada oficialmente na semana passada. Martins-de-Souza destaca o fato de o
estudo ser 100% brasileiro e trazer descobertas inéditas.
"A bem da verdade, as
revistas científicas não confiaram tanto no dado naquele momento. Depois que
outros estudos na área foram divulgados, conseguimos a publicação, mas fomos o
primeiro grupo no mundo a divulgar o que a gente divulgou. O preprint já teve
70 citações e tem a parte boa de mostrar quem colocou o pé primeiro na
terra", afirma.
"Ver colegas publicando
seus trabalhos nesta revista, bastante reconhecida no cenário internacional,
traz bastante orgulho para nós, pesquisadores brasileiros", diz Matheus de
Castro Fonseca, pesquisador Associado no Tianqiao and Chrissy Chen Neuroscience
Research Building do Instituto de Tecnologia da Califórnia (Caltech).
Pesquisa é essencial para
desenvolver tratamento
A pesquisa não identificou
maneiras de evitar ou mitigar danos cerebrais da covid-19, a não ser tentar não
pegar a doença. No entanto, a área tem motivado pesquisadores a encontrar novos
caminhos.
"Agora que temos um
grande número de pacientes pós-infecção para ser analisados, diversos estudos
ao redor do mundo têm demonstrado danos crônicos na cognição, memória de
trabalho e até mesmo controle de movimentos finos, como tremores", aponta
Matheus de Castro Fonseca, mestre em biologia celular e doutor em fisiologia e
farmacologia pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
Ele e Pâmela Billig Mello
Carpe observam que estratégias de reabilitação podem ser usadas. "As
funções cognitivas em geral podem ser treinadas, pois nosso sistema nervoso tem
uma função importante, a chamada neuroplasticidade, que permite que ele se modifique
de acordo com os estímulos que recebe", explica a doutora em ciências
fisiológicas pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
"Para o desenvolvimento
de tratamentos específicos, é essencial conhecer os mecanismos envolvidos na
geração das sequelas, por isso o incentivo à pesquisa é essencial",
completa a professora.
DW, Ana Paula Lisboa
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