quinta-feira, 24 de outubro de 2019

Desafios aos programas de compliance


Como avaliar efetividade das políticas de conformidade e criar um sistema de incentivo para a sua implementação
Uma das mais problemáticas questões relacionadas à efetividade dos programas de compliance diz respeito à capacidade de avaliação de sua efetividade, seja internamente pela própria empresa, seja pelos órgãos incumbidos do poder de impor as sanções e proceder à dosimetria de penas.

Em primeiro lugar, os programas de compliance envolvem características muito dinâmicas e inerentes ao próprio contexto organizacional. Daí por que é difícil desenvolver uma abordagem holística para aferir se a empresa detém capacidade organizacional adequada para difundir a ética em seus processos de decisão1.

Conforme alerta Maurice Stucke2, tal ponto impacta de forma determinante na habilidade de as empresas compreenderem o regime de incentivos, e, a partir dele, moldarem a sua conduta e sua organização rumo à estruturação de programas de compliance efetivos. Esse aspecto é ainda mais complexo quando somado à inconsistência em relação aos critérios e às metodologias a serem utilizados na avaliação do compliance pelos reguladores.

Ademais, ainda que existam diretrizes para avaliação, a exemplo daquelas empregadas pela CGU, diante da própria natureza que assumem os programas de compliance, muitos dos componentes de avaliação não são de fato suscetíveis de gerarem um padrão avaliativo uniforme e aplicável universalmente a diversos setores.

Consequentemente, tem-se a delicada situação em que o agente econômico, ao optar pela implementação de um programa de compliance, submete-se a suportar de imediato os custos respectivos, sem muitas vezes ter uma avaliação adequada da necessária contrapartida, traduzida nos benefícios que dele se esperam.

Logo, enquanto os custos do compliance são certos e imediatos, os benefícios muitas vezes se colocam em um horizonte de incerteza e de longo prazo.

É fácil entender a razão pela qual, no contexto descrito, não há garantias de que, a partir de um modelo baseado em checklists, haverá de fato o compromisso da empresa com a conformidade efetivamente traduzido em suas práticas. Desse modo, a apresentação formal de atendimento das diretrizes emanadas pelos guidelines pode não ter muita significância na diferenciação de um programa de compliance de fachada ou efetivo.

Daí a necessidade de que, partindo da premissa de que a autorregulação não existe em um vazio institucional e apenas será eficaz em um contexto de corregulação, possa o Estado avançar na tarefa de facilitar e incentivar a adoção de programas de compliance, o que não será possível sem a construção de critérios e metodologias de avaliação que criem os incentivos necessários para a sua implementação de forma segura pelas empresas.

Para tal objetivo, um caminho necessita ser trilhado: é preciso que a avaliação dos programas de compliance se dê por meio de medições empíricas, para aumentar a clareza e reduzir a discricionariedade na interpretação.

Por isso, Eugene Soltes3 propõe um modelo de avaliação flexível, baseado no atendimento de duas condições necessárias pelas empresas: (i) a existência de iniciativas para apoiar cada dos três objetivos (prevenção, detecção e alinhamento dos objetivos regulatórios) de um programa eficaz e (ii) uma rigorosa evidência científica para apoiar a eficácia de cada uma das iniciativas de compliance. Trata-se de uma abordagem que reconhece que diferentes empresas irão projetar seus programas de maneiras diferentes, necessitando de uma avaliação flexível nos respectivos componentes específicos.

A análise de Soltes mostra-se acertada, pois o incremento das rotas de responsabilização das empresas e a concessão de benefícios pela implementação dos programas de compliance, sem ter em conta o conhecimento científico sobre o comportamento esperado dos regulados, pode dar um senso de incredulidade ao compliance, especialmente quando se depositam todas as esperanças na autovigilância empresarial e não há embasamento métrico para qualificar um programa como efetivo.

Entretanto, os rumos para a avaliação de efetividade dos programas de compliance no Brasil ainda são incertos no que respeita os seus efeitos nas penas e no estabelecimento da culpabilidade. Tal dificuldade se apresenta, em primeiro lugar, porque o tema ainda é de desenvolvimento recente, além de ser complexa a discussão sobre os fundamentos da culpabilidade de pessoas jurídicas.

Entretanto, algumas questões sobre o tema começam a surgir nos tribunais, sendo oportuno abordar a discussão veiculada na TC 016.991/2015-0, que tramitou perante o Tribunal de Contas na União4.

Em um processo que discutia a aplicação das sanções de inidoneidade pelo prazo de 5 anos pela Corte de Contas, foram opostos embargos de declaração, nos quais uma das empresas recorrentes argumentou a omissão no acórdão quanto à consideração de elementos que demonstram a observância das regras de compliance. Segundo a embargante, a eficácia e a implementação do programa estariam comprovadas pela obtenção de certificações ISO 19600:2014 e ISO 37001:2016, e pelo reconhecimento do compliance pela CGU, no ano de 2016, com atribuição de nota 9 no Programa Pró-ética.

Não obstante isso, o Tribunal não entrou no mérito quanto ao ponto, apenas registrado a falta de omissão, reafirmando seu posicionamento a partir de transcrição o acórdão embargado, nos seguintes moldes: '(?) não há rol de agravantes e atenuantes legalmente firmado. Mas, no caso concreto, pelas tratadas consequências da fraude, a punição deve ser a maior fixada pela lei'.

Ora, a existência de um programa de compliance efetivo deveria ser analisada em situações como essa. Na verdade, o ideal seria até que se cogitasse de exclusão de responsabilidade administrativa da empresa em casos nos quais se afastasse a reprovabilidade da conduta diante da inexistência de defeito da organização, sem prejuízo da responsabilidade civil objetiva da empresa pelo ressarcimento de eventuais danos e da responsabilidade das pessoas naturais que praticaram o ilícito em nome da empresa5.

Entretanto, é fundamental que a eficácia dos programas de compliance seja considerada ao menos como um atenuante, sob pena de se reduzirem excessivamente os incentivos para a sua adoção pelos agentes econômicos.

Logo, em que pese o TCU não ter apreciado diretamente a questão, estima-se que cada vez mais se avolumem alegações de tal natureza, sendo uma tendência natural que o compliance passe a ser tematizado na aferição da responsabilidade e na dosimetria das penas.

Espera-se, portanto, dos tribunais, que possam estar preparados para enfrentar o tema, cientes de que seus entendimentos serão fundamentais para incentivar ou desincentivar o engajamento dos agentes econômicos no compliance.

Outra dificuldade que merece registro é a ausência de adequada publicização ou facilidade de acesso em relação às decisões da administração pública proferidas no âmbito do processo administrativo sancionador, dificultando a análise e a sistematização dos critérios concretos de dosimetria aplicados pelas autoridades de enforcement nacional.

Assim, é necessário que os reguladores encontrem meios de divulgação e consolidação concreta dos aspectos ponderados na avaliação de efetividade dos programas, mesmo que para tanto tenham que filtrar a informação por decorrência do sigilo das investigações e dos envolvidos com os acordos de leniência.

Desse modo, para compreender com maior segurança a efetividade do compliance no Brasil, será necessário acompanhar de perto os dados sobre a aplicação do instrumento pelas próprias empresas e pelos órgãos que detenham a competência para avaliação dos programas de compliance. Esses aspectos são cruciais não só para academia, mas, sobretudo para garantir a transparência da efetividade da política regulatória para a sociedade.

Conclui-se, portanto, que a implementação de programas de compliance efetivos é um objetivo que dificilmente será alcançado sem o engajamento recíproco de reguladores e regulados em construir, de forma clara, segura e transparente, não somente critérios e metodologias de avaliação, mas também os incentivos para a adoção dos referidos programas, especialmente no que diz respeito à atenuação da responsabilidade no âmbito punitivo.

Por Ana Frazão e Natália de Melo Lacerda


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