sábado, 28 de janeiro de 2017

Se a sociedade não abrir os olhos, mais uma vez as operadoras vão se esbaldar em cima dos brasileiros


Detalhes nada pequenos da nova LGT
Reformar a Lei Geral das Telecomunicações (LGT) é uma daquelas propostas que faz o auditório inteiro balançar a cabeça em aprovação. O marco regulatório data de 1997, quando o telefone fixo era essencial, os celulares despontavam como acessório de luxo e a internet era coisa de geeks e pesquisadores. Hoje o telefone fixo é um brinde que acompanha a banda larga, smartphones são o maior desejo de consumo e a internet já é o habitat natural da maioria dos brasileiros.
Atualizar a legislação das telecomunicações para acelerar o investimento em novas tecnologias e garantir aos cidadãos banda larga de qualidade é, na verdade, um truísmo. Não conheço alguém que discorde desse objetivo. E a pretexto de alcançá-lo, o Projeto de Lei 79/2016 acaba de ser aprovado numa velocidade só encontrada em conexões por fibra ótica. O diabo, porém, mora nos detalhes. E no PL 79/2016 ele se escondeu em três minúcias.
Em resumo, o projeto permitirá que as concessionárias de telefonia fixa adaptem seus contratos de concessão para termos de autorização, o que se traduz em alteração de regras que lhes renderão economia de bilhões de reais. Uma dessas novas regras dispensa a devolução à União, em 2025, do conjunto de bens utilizado pelas concessionárias na prestação da telefonia fixa. São os ditos bens reversíveis, que abrangem desde os imóveis utilizados pelas concessionárias aos inúmeros elementos que compõem as redes de telecomunicações, a exemplo dos cabos de fibra ótica que atravessam as diversas regiões do país e se ramificam para chegar aos centros urbanos - backbone e backhaul.
Não há saída legítima que não passe pela sua rejeição, seguida de imediata abertura de um amplo debate
No ano de 2013, o TCU os avaliou em cerca de R$ 100 bilhões. Sob o ponto de vista da utilização eficiente dos Recursos Públicos, é mais apropriado empregar essa enorme quantia na realização de investimentos em prol da sociedade, ao invés de deixá-la imobilizada indeterminadamente. Até aqui, é louvável a intenção do projeto.
A primeira controvertida minúcia se encontra, contudo, na apuração e no futuro emprego dos valores correspondentes ao conjunto dos bens reversíveis. Com o PL, em troca da aquisição dos bens reversíveis, as empresas se comprometerão a investir somas ainda sequer calculadas, o que prejudicará o erário.
Trocando em miúdos, a proposta deixa brecha para que a alienação dos bens reversíveis ocorra sem que o preço e a forma de pagamento estejam completa e previamente ajustados. É, sem dúvida, uma imprudência que ninguém cometeria na venda do próprio carro. O receio de uma tal interpretação não é sem fundamento.
A Anatel já tentou, em 2009, arranjo similar na prorrogação das autorizações de uso de radiofrequência na faixa de 2,5GHz. Colecionou como resultado disputas judiciais sobre a fixação e o pagamento do preço que se arrastam até hoje. De outro lado, tampouco a destinação dos investimentos a serem prometidos pelas empresas possui critérios claros. O projeto dispõe que os "investimentos priorizarão a implantação de infraestrutura de rede de alta capacidade de comunicação de dados em áreas sem competição adequada e a redução das desigualdades". O que a Anatel interpretará como "competição adequada" ainda é uma incógnita.
Nada garante que esses recursos sejam alocados em áreas de baixa renda, nas quais as prestadoras jamais teriam interesse em investir. As demais localidades, rentáveis, já integram naturalmente os planos de investimento das prestadoras de telecomunicações. E essas não merecem receber dinheiro dos contribuintes para realizar projetos que já fariam espontaneamente.
O próprio conceito de bem reversível sofrerá modificação pelo PL79/2016, uma segunda sutileza redacional com propósito claro. Atualmente a Anatel considera bens reversíveis todos aqueles utilizados, direta ou indiretamente, total ou parcialmente, na prestação da telefonia fixa. Isso significa que toda a infraestrutura de telecomunicações por onde passe um bit de voz transmitido pela telefonia fixa torna-se integralmente reversível.
Com a alteração, o conceito seria restringido aos bens exclusivamente empregados na telefonia fixa, na proporção em que são utilizados. Sobrariam para a União alguns imóveis, fios de cobre e parcela ínfima dos valiosos cabos de fibra ótica, abrindo mão de dezenas de bilhões de reais que fazem falta à expansão da banda larga.
Nesse ponto, vale lembrar que o conceito de bem reversível encontra-se também disciplinado nos contratos de concessão desde 1998. Qualquer alteração conceitual somente pode ocorrer pela via igualmente contratual, indenizando-se perdas econômico-financeiras. É a única forma de respeitar os direitos patrimoniais dos contratantes, impedindo-se, neste caso, o desequilíbrio prejudicial à sociedade.
O terceiro detalhe nada pequeno do PL é a possibilidade de prorrogações infinitas das outorgas de uso de radiofrequência e de posição orbital para satélites. Sem radiofrequências, os celulares não funcionam. Sem posições orbitais, a televisão por assinatura via satélite também não. Hoje as prorrogações ocorrem apenas uma vez, obrigando que a Anatel leiloe novamente as outorgas a cada 30 anos.
Licitar outorgas é obrigação constitucional, o que dá oportunidades iguais a todos os competidores, fomentando a concorrência e aferindo o real valor de mercado do bem leiloado. Com a proposta aprovada, radiofrequências e posições orbitais ficarão eternamente nas mãos dos mesmos particulares.
As telecomunicações precisam, sim, de novas regras. Reduzir custos do setor é um objetivo correto. Mas certamente não é o PL 79/2016 que melhor atenderá ao interesse público. O destino desse projeto deve ser o arquivo das más ideias. Não há saída legítima que não passe pela sua rejeição, seguida de imediata abertura de amplo debate social sobre a justa distribuição, entre empresas e cidadãos, dos ganhos econômicos bilionários que valem a reforma. Se o nascimento da LGT precisou de mais de 2 anos de intensas discussões na sociedade e no Congresso, sua revisão mereceria bem mais que esses apagados 6 meses de gestação.

Por Victor Cravo, no Valor Econômico/SP

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