Detalhes nada
pequenos da nova LGT
Reformar a Lei
Geral das Telecomunicações (LGT) é uma daquelas propostas que faz o auditório
inteiro balançar a cabeça em aprovação. O marco regulatório data de 1997,
quando o telefone fixo era essencial, os celulares despontavam como acessório
de luxo e a internet era coisa de geeks e pesquisadores. Hoje o telefone fixo é
um brinde que acompanha a banda larga, smartphones são o maior desejo de
consumo e a internet já é o habitat natural da maioria dos brasileiros.
Atualizar a
legislação das telecomunicações para acelerar o investimento em novas
tecnologias e garantir aos cidadãos banda larga de qualidade é, na verdade, um
truísmo. Não conheço alguém que discorde desse objetivo. E a pretexto de
alcançá-lo, o Projeto de Lei 79/2016 acaba de ser aprovado numa velocidade só
encontrada em conexões por fibra ótica. O diabo, porém, mora nos detalhes. E no
PL 79/2016 ele se escondeu em três minúcias.
Em resumo, o
projeto permitirá que as concessionárias de telefonia fixa adaptem seus
contratos de concessão para termos de autorização, o que se traduz em alteração
de regras que lhes renderão economia de bilhões de reais. Uma dessas novas
regras dispensa a devolução à União, em 2025, do conjunto de bens utilizado
pelas concessionárias na prestação da telefonia fixa. São os ditos bens
reversíveis, que abrangem desde os imóveis utilizados pelas concessionárias aos
inúmeros elementos que compõem as redes de telecomunicações, a exemplo dos
cabos de fibra ótica que atravessam as diversas regiões do país e se ramificam
para chegar aos centros urbanos - backbone e backhaul.
Não há saída
legítima que não passe pela sua rejeição, seguida de imediata abertura de um
amplo debate
No ano de 2013, o
TCU os avaliou em cerca de R$ 100 bilhões. Sob o ponto de vista da utilização
eficiente dos Recursos Públicos, é mais apropriado empregar essa enorme quantia
na realização de investimentos em prol da sociedade, ao invés de deixá-la
imobilizada indeterminadamente. Até aqui, é louvável a intenção do projeto.
A primeira
controvertida minúcia se encontra, contudo, na apuração e no futuro emprego dos
valores correspondentes ao conjunto dos bens reversíveis. Com o PL, em troca da
aquisição dos bens reversíveis, as empresas se comprometerão a investir somas
ainda sequer calculadas, o que prejudicará o erário.
Trocando em miúdos,
a proposta deixa brecha para que a alienação dos bens reversíveis ocorra sem
que o preço e a forma de pagamento estejam completa e previamente ajustados. É,
sem dúvida, uma imprudência que ninguém cometeria na venda do próprio carro. O
receio de uma tal interpretação não é sem fundamento.
A Anatel já tentou,
em 2009, arranjo similar na prorrogação das autorizações de uso de
radiofrequência na faixa de 2,5GHz. Colecionou como resultado disputas
judiciais sobre a fixação e o pagamento do preço que se arrastam até hoje. De
outro lado, tampouco a destinação dos investimentos a serem prometidos pelas
empresas possui critérios claros. O projeto dispõe que os "investimentos
priorizarão a implantação de infraestrutura de rede de alta capacidade de
comunicação de dados em áreas sem competição adequada e a redução das
desigualdades". O que a Anatel interpretará como "competição
adequada" ainda é uma incógnita.
Nada garante que
esses recursos sejam alocados em áreas de baixa renda, nas quais as prestadoras
jamais teriam interesse em investir. As demais localidades, rentáveis, já
integram naturalmente os planos de investimento das prestadoras de
telecomunicações. E essas não merecem receber dinheiro dos contribuintes para
realizar projetos que já fariam espontaneamente.
O próprio conceito
de bem reversível sofrerá modificação pelo PL79/2016, uma segunda sutileza
redacional com propósito claro. Atualmente a Anatel considera bens reversíveis
todos aqueles utilizados, direta ou indiretamente, total ou parcialmente, na
prestação da telefonia fixa. Isso significa que toda a infraestrutura de
telecomunicações por onde passe um bit de voz transmitido pela telefonia fixa
torna-se integralmente reversível.
Com a alteração, o
conceito seria restringido aos bens exclusivamente empregados na telefonia
fixa, na proporção em que são utilizados. Sobrariam para a União alguns
imóveis, fios de cobre e parcela ínfima dos valiosos cabos de fibra ótica,
abrindo mão de dezenas de bilhões de reais que fazem falta à expansão da banda
larga.
Nesse ponto, vale
lembrar que o conceito de bem reversível encontra-se também disciplinado nos
contratos de concessão desde 1998. Qualquer alteração conceitual somente pode
ocorrer pela via igualmente contratual, indenizando-se perdas
econômico-financeiras. É a única forma de respeitar os direitos patrimoniais
dos contratantes, impedindo-se, neste caso, o desequilíbrio prejudicial à
sociedade.
O terceiro detalhe
nada pequeno do PL é a possibilidade de prorrogações infinitas das outorgas de
uso de radiofrequência e de posição orbital para satélites. Sem
radiofrequências, os celulares não funcionam. Sem posições orbitais, a
televisão por assinatura via satélite também não. Hoje as prorrogações ocorrem
apenas uma vez, obrigando que a Anatel leiloe novamente as outorgas a cada 30
anos.
Licitar outorgas é
obrigação constitucional, o que dá oportunidades iguais a todos os
competidores, fomentando a concorrência e aferindo o real valor de mercado do
bem leiloado. Com a proposta aprovada, radiofrequências e posições orbitais
ficarão eternamente nas mãos dos mesmos particulares.
As telecomunicações
precisam, sim, de novas regras. Reduzir custos do setor é um objetivo correto.
Mas certamente não é o PL 79/2016 que melhor atenderá ao interesse público. O
destino desse projeto deve ser o arquivo das más ideias. Não há saída legítima
que não passe pela sua rejeição, seguida de imediata abertura de amplo debate
social sobre a justa distribuição, entre empresas e cidadãos, dos ganhos econômicos
bilionários que valem a reforma. Se o nascimento da LGT precisou de mais de 2
anos de intensas discussões na sociedade e no Congresso, sua revisão mereceria
bem mais que esses apagados 6 meses de gestação.
Por Victor Cravo,
no Valor Econômico/SP
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