Muitos produtos mundialmente famosos usam recursos vindos de outros países. Repartição de ganhos por esse uso é apontada como desafio global.
A Floresta Amazônica foi inúmeras
vezes fonte de sucesso de produtos caros fabricados no exterior, como o perfume
Chanel número 5. A famosa fragrância francesa, que custa cerca de R$ 900, tem
em sua fórmula óleo essencial do pau-rosa, extraído da árvore típica da
Amazônia.
A exploração ilegal e descontrolada
colocou o pau-rosa na lista de espécies ameaçadas de extinção em 1992. A marca
francesa, por sua vez, nunca dividiu os ganhos com os brasileiros. Mas isso
pode mudar no futuro como a assinatura do acordo inédito, chamado de
Kunming-Montreal, resultado da 15° Conferência da ONU de Biodiversidade,
encerrada nesta segunda-feira (19/12).
Dentre os 23 objetivos listados no
documento, o de número 13, que dividiu países ao longo das negociações, segue
alvo de desconfiança. Ele prevê que quem usa elementos da biodiversidade em
fórmulas de produtos reparta os ganhos com o local de onde a informação foi
extraída.
Além do famoso perfume, há muitos
outros casos de empresas que usam recursos genéticos de plantas, animais e
microrganismos de outras regiões – e nem sempre de forma legal.
Segundo o acordo, a repartição justa
e equitativa dos benefícios deve ser feita a partir do uso não só das espécies
em si, mas de dados de sequenciamento genético disponíveis em bancos digitais
(DSI, na sigla em inglês). Essa partilha deve levar em conta os conhecimentos
tradicionais associados aos recursos genéticos em questão, que muitas vezes vêm
de povos indígenas, quilombolas, ribeirinhos, raizeiros, entre outros.
"O problema é como garantir que
a repartição de benefícios a partir desses bancos genéticos faça jus de fato a
esse conhecimento tradicional associado que levou ao mapeamento dessas espécies
e às especificidades do uso dessas espécies para determinados fins, sejam eles
farmacêuticos, cosméticos ou outros", pontua Frineia Rezende, diretora
executiva da ONG The Nature Conservancy (TNC) Brasil.
Para negociadores indígenas, o texto
final é ambíguo. Antes nomeados como beneficiários primários dessa partilha
por, historicamente, serem os maiores guardiões da biodiversidade no planeta,
povos indígenas agora são parte de uma lista maior.
"Não nos opomos a partilhar os
benefícios da DSI com a sociedade em geral. Mas seria uma tragédia e injustiça,
se a sociedade não priorizasse a reparação dos estragos causados em nossas
terras e águas e não investisse nos valores de relacionamento respeitoso e de
convivência com a natureza, que são o cerne para que as metas do acordo sejam
alcançadas", argumenta Jennifer Corpuz, uma das líderes nas negociações
sobre o tema em nome do Fórum Indígena Internacional sobre Biodiversidade.
Da natureza ao banco digital
A decodificação genética de animais,
plantas e outros organismos e o compartilhamento desse material em bancos
digitais revolucionou a biotecnologia. Foi isso que alavancou, por exemplo, o
desenvolvimento rápido de vacinas contra a covid num contexto em que a pandemia
matava milhões diariamente.
Por outro lado, o uso indevido de
informações provenientes da flora, fauna e outras formas de vida por
multinacionais pode ser especialmente prejudicial para países ricos em
biodiversidade, como o Brasil.
"Países como Brasil, que já
possui legislação e são detentores de megabiodiversidade, terão que se preparar
para garantir a rastreabilidade das informações obtidas a partir de banco de
dados ou de sequenciamento genético", alerta Rezende.
Para Fernanda Kaingáng, advogada e
diretora executiva do Instituto Indígena Brasileiro para Propriedade
Intelectual, não faltam maus exemplos de apropriação indevidas de recursos da
biodiversidade brasileira por empresas, prática conhecida como biopirataria.
"É só ver o número de patentes
sobre guaraná, andiroba, entre outros frutos do Brasil, por companhias
estrangeiras. Somos matéria-prima de exportação, de royalties, de
patentes", argumenta Fernanda, que reforça que esse tipo de roubo por
terceiros é histórico no país.
Como um dos casos mais absurdos, ela
cita a venda disseminada do adoçante stevia no mercado. "O stevia era de
uso dos guarani, o povo mais atacado do país. Todas as armas estão apontadas
para eles, expulsos de suas terras, que sofrem a violência todos os dias. O
roubo não é só das informações genéticas, mas da melhora de condições de vida
deles, é roubo dos conhecimentos tradicionais", critica a advogada.
Stevia rebaudiana, descrita em
diversos estudos científicos por seu poder natural de adoçar, é a planta
chamada de ka'a he'ẽ em guarani. Ela é usada tradicionalmente por esse povo que
habita o leste do Paraguai, e pelos kaiowa, do sul de Mato Grosso do Sul.
Segundo relatos de anciões e anciãs, o ka'a he'ẽ era usado como um remédio,
edulcorante de alimentos e empregado em rituais.
"Eles nunca receberam nada,
nunca houve repartição de benefícios. É um dos maiores prejuízos históricos
sofrido pelo povo guarani", afirma Fernanda.
Outros exemplos
Um caso levado aos tribunais foi
encerrado em 2019 após uma longa batalha. Naquele ano, a Justiça deu ganho para
o povo ashaninka contra a Tawaya, empresa acusada de usar indevidamente o
conhecimento tradicional dos indígenas na fabricação do sabonete de murumuru e
não repartir os benefícios com as comunidades. O fruto da palmeira é usado como
hidratante e remédio entre esse povo do Acre.
A multa, estipulada no valor de R$ 5
milhões, talvez nunca seja paga pela empresa sediada na cidade acreana de
Cruzeiro do Sul. "Ainda assim, a vitória dos ashaninka é histórica e
representa um marco importante", opina Francine Leal, diretora executiva
da GSS Bioinovação e Carbono, consultoria especializada em assuntos
relacionados à biodiversidade,
Casos como esse, avalia Rezende,
tornam a discussão sobre o uso dos elementos da biodiversidade urgente. "Qual
é o limite entre o acesso aos recursos genéticos e o que é transformado
geneticamente a partir desse patrimônio? Hoje em dia, todo mundo faz mapeamento
genético. Qual é a garantia que você tem que qualquer coisa que seja produzida
a partir do patrimônio genético gere repartição de benefícios?", aponta
Rezende questões que devem ser respondidas no futuro.
Fernanda Kaingáng defende que não só
a exploração econômica deve ser discutida. "A lei não se aplica à pesquisa
científica. No Brasil, cientistas publicam sem proteger a informação de
patente. Foi assim que uma empresa japonesa roubou a marca cupulate
desenvolvida por pesquisadores da Embrapa", explica a advogada.
O termo se refere a um produto
semelhante ao chocolate, feito a partir das amêndoas do cupuaçu, típica da
Amazônia. Uma companhia japonesa chegou a registrar patente da invenção
brasileira, mas a Embrapa recuperou a marca em 2015.
Lei nacional e críticas
Para Leal, o mecanismo multilateral
definido no acordo, que será detalhado nos próximos anos, precisa alinhar os
conceitos definidos nas legislações nacionais sem inviabilizar as pesquisas e
desenvolvimento da ciência brasileira.
"O Brasil tem uma das leis mais
avançadas do mundo. Ela prevê a repartição justa e equitativa dos benefícios
vindo do uso do nosso patrimônio genético, como previsto na Convenção sobre
Diversidade Biológica da ONU", comenta Leal, em referência à lei nacional
13.123, de 2015.
Ela é uma das autoras do projeto
Brogotá, que compila normas de acesso e repartição de benefícios em diversos
países. Um dos avanços no caso brasileiro, aponta Leal, é a existência do
Conselho de Gestão do Patrimônio Genético, que centraliza todas as demandas e
conta com representantes da sociedade civil, academia e dos povos tradicionais.
Fernanda Kaingáng, advogada indígena,
tem uma visão diferente. "Nossa lei nacional tem retrocessos. Desapareceu
do texto o direito dos povos indígenas de decidir o uso do conhecimento
tradicional deles. Tentam dar um domínio público ao conhecimento tradicional
que é indevido. Se não houve consentimento, se não houve divisão equitativa, é
apropriação indevida do conhecimento", critica, ressaltando que a lei
nacional prevê que até 1% dos ganhos obtidos a partir do uso desses saberes
seja repartido com os detentores originais da informação.
"Indústrias foram as únicas
consultadas quando essa lei foi feita. Os indígenas nunca foram devidamente
consultados", adiciona.
DW
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