Dez anos após a publicação do Novo Código Florestal, o Brasil tem hoje 6,7 milhões de imóveis registrados no Cadastro Ambiental Rural (CAR). O alto volume, porém, contrasta com o pouco controle do poder público sobre as informações declaradas por produtores. Lançado nesta sexta-feira (16), o Termômetro do Código Florestal, iniciativa do observatório que acompanha a aplicação da lei, identificou que 42 milhões de hectares dos imóveis têm sobreposição com territórios protegidos: unidades de conservação, terras indígenas, florestas públicas, áreas quilombolas e assentamentos. De todos os CARs, apenas 23,8% passou por alguma análise, e somente 0,5% foi validado.
— O tamanho dessa área declarada em
terras protegidas causa um impacto muito negativo. São produtores que têm
acesso a créditos para financiar a produção agrícola mesmo em locais proibidos
— explica Roberta Del Giudice, secretária executiva do Observatório do Código
Florestal. — Há imóveis registrados de forma equivocada, por causa de problemas
em cartórios. Mas a maior parte dos casos é de proprietários querendo fazer
grilagem. Nos últimos quatro anos tivemos muitos discursos que viabilizavam a
tentativa de regularizar propriedades dentro de áreas protegidas.
A validação pelo poder público dos
CARs, que são registrados por autodeclaração, é um passo obrigatório para que o
terreno seja inserido no Programa de Recuperação Ambiental (PRA), instrumento
criado pelo Código Florestal para a restauração da vegetação perdida no
passado. Em 2012, a lei anistiou desmatamentos, mesmo irregulares, causados até
2008, suspendendo multas referentes a cerca de 40 milhões de hectares
destruídos. Foram estabelecidas, então, regras para que o proprietário
compensasse o déficit, o que ajudaria o país a bater a meta, firmada no Acordo
de Paris, de recuperação de 12 milhões de hectares de áreas degradadas.
Mas, com a análise dos cadastros
estagnada, o efeito positivo da lei não é posto em prática. E com o pouco
controle, crescem as autodeclarações em territórios proibidos. Vale destacar
que, desde 2014, ou seja, pouco tempo após a nova legislação, o desmatamento na
Amazônia voltou a ter um crescimento de alta, interrompendo o período anterior
de redução.
O Termômetro do Código Florestal
reuniu especialistas de diversos institutos e, através do cruzamento de dados
oficiais e imagens de satélite, conseguiu mapear os perímetros das milhões de
propriedades declaradas no país. Entre os 42,2 milhões de hectares de áreas
sobrepostas, 25,4 milhões de hectares de terras cadastradas como imóveis rurais
privados estão em unidades de conservação, terras indígenas e florestas
públicas. Outros 16,8 milhões de hectares estão sobre territórios quilombolas e
assentamentos demarcados pelo INCRA, o que evidencia existência de regiões
vulneráveis a conflitos de terra e violência no campo.
Com os territórios em sobreposição
mapeados, é possível identificar as áreas mais pressionadas, e que deveriam ser
priorizadas na análise dos CARs, explica Del Giudice, em especial no Pará e no
Acre.
— Quando analisamos dados no
Termômetro, a gente percebe que é possível priorizar áreas na implementação do
Código Florestal, identificando onde os déficits e as pressões estão mais
concentrados. Claro que é um trabalho hercúleo validar mais de 6 milhões de
cadastros no Brasil inteiro, mas podemos estabelecer, com esse levantamento de
informações, o que é mais emergencial como política pública.
O Observatório do Código Florestal
entregou ao governo de transição um documento com cinco iniciativas para tornar
mais célere a implementação do Código Florestal. Uma das principais demandas é
que as ações de proteção da vegetação em imóveis rurais e assentamentos migrem
do Ministério da Agricultura, como ocorre hoje, para o Ministério do Meio
Ambiente.
Além disso, há iniciativas de institutos
e universidades para promover um sistema mais ágil de validação, como o CAR
2.0, desenvolvido pela UFMG, liderado pelo pesquisador Raoni Rajão. Pela lei, a
análise deve ser feita prioritariamente pelos governos estaduais, mas o governo
federal também é responsável pelo sistema, e nos últimos anos vem prometendo
ações nesse sentido.
— Nós conseguimos identificar que na
Mata Atlântica, por exemplo, 80% dos imóveis declarados cumprem com as regras
do código, então poderiam passar por uma validação automática, e o governo
priorizaria a análise dos outros cadastros. Mas sem a devida análise, não temos
noção do tamanho do déficit e perdemos oportunidade de acelerar uma economia de
restauração florestal, além de produtores não conseguirem acessar parte dos mercados
internacionais de commodities, por falta de ações sustentáveis — complementou
Roberta Del Giudice.
Além do que já foi identificado pelo
Termômetro, a sobreposição de imóveis com áreas protegidas pode ser ainda maior,
já que há muitos territórios quilombolas que ainda não foram oficialmente
reconhecidos pelo governo, o que dificulta o mapeamento. São terras que já
podem estar sofrendo pressão de imóveis rurais, mas ainda estão invisíveis.
O Código Florestal estabeleceu que as
áreas de Povos e Comunidades Tradicionais precisam também ser autodeclaradas,
uma medida que ajudaria a direcionar políticas públicas além de garantir acesso
a créditos para pequenos produtores em assentamentos rurais ou terras
quilombolas. Esses cadastros, porém, raramente foram feitos, muito em função da
falta de assistência técnica, explicou Antonio Oviedo, pesquisador do Instituto
Socioambiental, que participou da formulação do Termômetro.
— Ainda há muitos territórios
tradicionais sem cadastrados no sistema. Assim, aumenta o risco de um estado
validar um imóvel rural que está em sobreposição a uma comunidade invisível.
Das 1500 comunidades quilombolas, a minoria está no sistema do CAR — afirmou
Oviedo durante o lançamento do Termômetro. — Muitas comunidades tradicionais
vivem em regiões remotas e têm problemas tecnológicos. É importante que
governos estaduais e federal deem assistência técnica.
Assentamentos rurais sofrem pressão
da soja
Outro segmento que sofre pressão do
agro é o dos assentamentos. Hoje, existem mais de 31 milhões de hectares de
assentamentos cadastrados no Brasil: 91% na Amazônia. Mas, do total de área
cadastrada, 13,7 milhões estão em sobreposição com outros imóveis rurais, o que
equivale à soma dos territórios de Portugal e Holanda.
— Assentamentos rurais são áreas de
extrema importância para a produção de alimentos, mas que sofrem pressão de
desmatamento. A plantação de soja está entrando fortemente nos assentamentos.
Precisamos urgentemente avançar na implementação do código florestal para
assegurar políticas públicas de proteção — disse Jarlene Gomes, coordenadora do
Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazonia (Ipam), durante o evento de
lançamento.
Procurado, o Ministério da
Agricultura, Pecuária e Abastecimento não se manifestou.
O Globo
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