Um dos casos diante da Suprema Corte alega que o processo de seleção da Universidade Harvard, uma das mais prestigiosas do país, discrimina estudantes asiáticos |
Nesta semana, a Suprema Corte dos Estados Unidos, mais alta instância da Justiça do país, ouviu os argumentos de dois casos que poderão transformar a maneira como as universidades americanas selecionam seus alunos.
Os casos diante dos nove juízes do tribunal contestam a
inclusão da raça dos candidatos entre os vários critérios considerados nos
programas de admissão da Universidade Harvard e da Universidade da Carolina do
Norte (UNC). Os autores dos processos alegam que o uso de ações afirmativas por
essas instituições prejudica estudantes brancos e de origem asiática e
representa discriminação racial.
A decisão final só deve ser anunciada na metade de 2023,
mas os casos já são considerados entre os mais importantes deste calendário da
Suprema Corte (que começa em outubro e se estende até julho do ano seguinte).
Grupos contrários e a favor do uso de ações afirmativas estão planejando
manifestações em frente ao tribunal nesta segunda-feira.
Uma decisão que proíba o processo de seleção dessas
universidades de levar em consideração a raça dos candidatos teria impacto em
outras instituições de ensino superior em todo o país. Segundo defensores do
uso de ações afirmativas, isso reduziria a diversidade e o número de alunos
negros e latinos em universidades americanas.
No passado, outros casos diante da Suprema Corte já
questionaram o uso de ações afirmativas no ensino superior, e o tribunal sempre
reafirmou a legalidade da prática, que é herança do movimento dos direitos
civis dos anos 1960.
Mas a atual composição da Corte, com seis juízes na
chamada ala conservadora (indicados por presidentes do Partido Republicano,
sendo três deles por Donald Trump) e apenas três na ala liberal (indicados por
presidentes do Partido Democrata), pode abrir caminho para uma decisão que
reverta quase 45 anos de precedentes.
Em junho deste ano, essa supermaioria conservadora já
levou a uma decisão que abandonou quase 50 anos de precedente no caso do
aborto, ao anular o direito constitucional à interrupção da gravidez, que era
garantido desde 1973 e havia sido reafirmado várias vezes ao longo de décadas.
O que dizem os dois lados
"(Sem ações afirmativas) os benefícios substanciais
da diversidade serão colocados em risco", disse em entrevista coletiva
nesta semana o diretor do projeto de oportunidades educacionais da organização
de direitos civis Lawyers' Committee for Civil Rights Under Law, David
Hinojosa.
Hinojosa foi um dos advogados a apresentar argumentos
orais diante da Suprema Corte na segunda-feira (31/10), defendendo o uso da
prática e representando como clientes ex-alunos da UNC.
"Esses casos (contra a UNC e Harvard) nos lembram
que a educação continua sendo um campo de batalha para os direitos civis",
disse na mesma entrevista o presidente do Lawyers' Committee, Damon Hewitt.
Para ambos, apesar de as ações afirmativas serem uma
questão de justiça racial, seu uso em universidades beneficia alunos de todas
as raças e "é crucial para formar um corpo diversificado de profissionais
para atuar em uma sociedade global e pluralista".
Mas apoiadores dos processos contra as universidades
dizem esperar que o tribunal ponha fim à prática.
"O sistema ideal deveria ser (o de levar em conta a)
diversidade de pensamento", disse à BBC News Brasil a presidente da
Chinese American Citizens Alliance Greater New York, Wai Wah Chin.
Sua organização, que representa americanos de origem
chinesa em Nova York, é uma entre várias integrantes da Asian American
Coalition for Education (Coalizão Asiática-Americana para Educação), grupo
formado em 2014 e que apoia os autores das ações.
"Um dos desafios que temos é que as universidades
estão buscando uma suposta diversidade de cor da pele. Nós não podemos olhar
para a cor da pele. Devemos olhar para as capacidades (de cada candidato) e
como podem contribuir por seu mérito", afirmou Chin.
O debate sobre ações afirmativas em universidades divide
os Estados Unidos há décadas. A decisão da Suprema Corte deve ser anunciada em
meados de 2023.
Os detalhes dos casos
Os casos diante da Suprema Corte têm origem em duas ações
iniciadas em 2014 pela organização Students for Fair Admissions (Estudantes por
Admissões Justas, ou SFFA, na sigla em inglês), fundada pelo ativista
conservador Edward Blum, que é branco e tem um longo histórico de processos
judiciais contra ações afirmativas.
De acordo com a SFFA, o uso da raça em processos de
seleção viola a garantia constitucional de igualdade de proteção da lei. A
organização afirma representar "mais de 20 mil estudantes, pais e outros
que acreditam que classificações e preferências raciais em admissões a universidades
são injustas, desnecessárias e inconstitucionais".
"Nossa missão é apoiar e participar de ações
judiciais que irão restaurar os princípios originais do movimento de direitos
civis da nossa nação: 'A raça e a etnia de um estudante não devem ser fatores
que prejudicam nem ajudam esse estudante a ganhar admissão em uma universidade
competitiva'", diz a SFFA.
Em uma das ações movidas em 2014, representando
candidatos de origem asiática rejeitados por Harvard, a SFFA acusou a
universidade, uma das mais prestigiosas do país, de discriminação e de violar
os direitos civis desses estudantes, que estariam sendo penalizados por sua
raça e perdendo a vaga para alunos brancos, negros e latinos menos
qualificados.
Segundo alegações da SFFA, como candidatos de origem
asiática costumam se sair melhor do que estudantes brancos ou de outras raças
em desempenho acadêmico, atividades extracurriculares e outras categorias
objetivas, a universidade estaria reduzindo suas notas em critérios que são
subjetivos e difíceis de quantificar, como "simpatia" ou
"compaixão".
Em sua ação, a SFFA alegava que Harvard estaria assim
manipulando determinados aspectos de seu processo de admissão, que é
notoriamente envolto em segredo, para tentar limitar o número de calouros de
origem asiática e manter inalterado o percentual de cada raça em seu corpo de
estudantes. Para a organização, o processo de admissão em Harvard equivale a um
sistema de cotas raciais, o que é proibido nos Estados Unidos.
Enquanto ações anteriores contestando ações afirmativas
tinham como protagonistas brancos que diziam ter sido prejudicados pela
preferência dada a negros ou latinos, o caso contra Harvard é diferente, ao
alegar que a prática penaliza estudantes asiáticos, eles próprios pertencentes
a uma minoria racial.
Resposta das universidades
Harvard rejeita as alegações e diz que a raça dos
candidatos nunca é considerada de maneira negativa e é apenas um entre vários
critérios analisados em uma abordagem "holística".
Advogados de Harvard ressaltam que o sistema de admissões
da instituição é considerado modelo e foi elogiado pela Suprema Corte em uma
decisão de 1978, que proibiu o uso de cotas, mas permitiu que universidades
considerem a raça dos candidatos entre os critérios de seleção, como modo de
assegurar diversidade.
Um dos argumentos de Harvard é o de que, se qualquer
consideração sobre raça for eliminada do processo de seleção, o resultado será
o declínio na diversidade, colocando em risco o que a instituição considera uma
parte fundamental de sua missão. A universidade é uma das mais competitivas do
país, e mais de 95% dos candidatos costumam ser rejeitados a cada ano.
Nesse contexto, com muito mais estudantes altamente
qualificados do que vagas, os advogados dizem que Harvard é obrigada a
considerar outros aspectos além do desempenho acadêmico para decidir quem é
aceito. Na turma mais recente, dos 61.220 estudantes que se inscreveram para
uma vaga, apenas 1.954 foram aceitos. Desses, 27,8% são de origem asiática,
15,5% são negros e 12,6% são latinos.
Na ação contra a UNC, a alegação é a de que a
universidade discrimina candidatos brancos e de origem asiática ao dar
preferência a estudantes negros, latinos ou indígenas. Assim como Harvard, a
UNC também nega as alegações de discriminação e defende suas práticas,
ressaltando que são legais e promovem diversidade.
Ambas as universidades receberam decisões favoráveis da
Justiça em instâncias inferiores. A SFFA apelou e, em janeiro deste ano, a
Suprema Corte anunciou que aceitaria analisar os dois casos.
Opinião dividida
O debate sobre ações afirmativas em universidades divide
os Estados Unidos há décadas. Defensores da prática ressaltam que é essencial
para garantir um ambiente acadêmico que reflita a diversidade da sociedade,
fator importante para a formação dos alunos.
Outros lembram que a raça dos candidatos é apenas um
entre os vários critérios que irão definir quem será admitido. Mas críticos
dizem que a seleção deveria ser baseada somente em fatores objetivos, como notas.
No ano passado, uma pesquisa Gallup indicou que 62% dos
americanos apoiam ações afirmativas para grupos minoritários e a maioria diz
acreditar que o racismo persiste no país e que é importante promover
diversidade racial.
Mas em outra pesquisa recente, divulgada neste ano Pew
Research Center, 74% dos entrevistados, entre eles 59% dos que se identificam
como negros, disseram que a raça ou etnia de um candidato não deveria ser um
fator na admissão de alunos em universidades.
Entre a própria comunidade de origem asiática, no centro
da ação contra Harvard, não há consenso sobre o tema. Os autores das ações
judiciais são criticados por alguns por supostamente explorar estudantes
asiáticos para avançar uma agenda que prejudicaria o interesse de minorias raciais.
"A oposição (às práticas) não fala pelos americanos
de origem asiática. Nós rejeitamos essas narrativas falsas enraizadas em
supremacia branca para colocar comunidades de cor umas contra as outras",
disse em entrevista coletiva John C. Yang, presidente e diretor executivo da
organização Asian Americans Advancing Justice, dedicada à defesa dos direitos
civis de americanos de origem asiática.
Mas outros manifestam apoio à SFFA. No fim de semana,
líderes comunitários representando americanos de origem asiática, entre eles
chineses, indianos, coreanos e vietnamitas, organizaram manifestações em
Washington em apoio às ações diante da Suprema Corte.
"Esperamos que a Corte decida em favor da SFFA, para
que possamos assegurar que considerações raciais não serão levadas em conta nas
admissões nas universidades", afirmou Chin, da Chinese American Citizens
Alliance, à BBC News Brasil.
"E, por extensão, queremos desafiar a noção de que a
raça (dos candidatos) deve determinar as admissões não apenas no ensino, mas
também em outras áreas."
Histórico
O uso de ações afirmativas nos Estados Unidos remonta aos
anos 1960, auge do movimento de luta pelos direitos civis. Em 1961, pouco
depois de chegar à Casa Branca, o então presidente John Kennedy assinou uma
ordem executiva determinando medidas descritas como "ações
afirmativas", para garantir que trabalhadores não sofressem discriminação
com base em raça, crença, cor ou origem nacional.
Essas práticas seriam uma forma de oferecer oportunidades
a pessoas de minorias raciais, prejudicadas pelas desigualdades resultantes de
séculos de escravidão e de políticas de segregação. Nas universidades, especialmente
as de ponta, onde estudantes brancos formavam a grande maioria, as ações
afirmativas passaram a ser uma ferramenta para tornar as instituições mais
racialmente integradas.
Mas, desde o início, a prática provocou reações
negativas, especialmente por parte de grupos conservadores, que questionavam
sua constitucionalidade. No fim da década de 1970, essas tensões chegaram à
Suprema Corte.
Em 1978, o tribunal anunciou sua decisão no caso do
estudante branco Allan Bakke, que havia entrado com uma ação contra a faculdade
de medicina da Universidade da Califórnia após ter sido rejeitado. Na época, a
instituição mantinha um sistema de cotas, com 16 de 100 vagas reservadas para
alunos de minorias raciais.
Bakke argumentava que o sistema de cotas era inconstitucional
e violava a Lei dos Direitos Civis de 1964. Em sua decisão, a Suprema Corte
concordou que cotas raciais numéricas violavam essa lei. Mas os juízes
permitiram o uso de ações afirmativas em determinadas circunstâncias, nas quais
a raça dos candidatos é considerada ao lado de vários outros critérios, com o
objetivo de promover diversidade no corpo estudantil.
Essa posição foi reafirmada pela Suprema Corte 25 anos
depois, no caso Grutter versus Bollinger, que contestava o uso de ações
afirmativas pela Universidade de Michigan e foi decidido em 2003. As ações
agora diante do tribunal pedem que os juízes derrubem esses precedentes.
Mais de 20 processos
Blum, que está à frente da SFFA e é ajudado por doações
financeiras de grupos conservadores, já moveu mais de 20 processos questionando
o uso de preferências raciais em diferentes aspectos da vida pública nos
Estados Unidos, alguns deles litigados até chegar à Suprema Corte.
Em um desses casos, em 2013, Blum foi vitorioso ao
contestar partes da lei dos Direitos de Voto de 1965 que exigiam que Estados
com histórico de discriminação racial obtivessem permissão federal antes de
mudar leis eleitorais.
Três anos depois, em 2016, ele foi o autor do último caso
sobre ações afirmativas no ensino superior a chegar à Suprema Corte. Naquela
ação, movida em nome de uma estudante branca que contestava a consideração de
raça no processo de seleção da Universidade do Texas, a decisão foi
desfavorável a Blum, e a Suprema Corte confirmou que o sistema de admissões da universidade
era legal.
Naquela decisão, o juiz Anthony Kennedy, nomeado pelo
presidente republicano Ronald Reagan, não votou com a ala conservadora, e se
aliou aos colegas da ala liberal para garantir a maioria. Mas Kennedy se
aposentou em 2018, e a composição da Suprema Corte é hoje considerada mais
fortemente conservadora.
Apesar das divisões, o uso de ações afirmativas é
limitado nos Estados Unidos. Atualmente, nove Estados proíbem universidades
públicas de considerar a raça dos candidatos entre os critérios de admissão.
Mesmo instituições que adotam ações afirmativas enfrentam
dificuldades em atingir diversidade na população estudantil, especialmente as
universidades de elite. Mas, nas que buscam outras alternativas, o sucesso
também costuma ser limitado.
O caso da Califórnia, onde em 2020 os eleitores
rejeitaram em consulta pública uma proposta que previa o fim da proibição,
costuma ser citado: apesar da busca de alternativas, como considerar condições
socioeconômicos em vez da raça dos candidatos, o corpo estudantil ainda não
reflete a diversidade racial do Estado.
BBC News, Alessandra Corrêa
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