Como um conflito, seja o de Putin ou o de soldados etíopes, atinge toda a cadeia de produção
Num primeiro olhar, Vladimir Putin tem pouco em comum com um
soldado etíope. Um tem palácios e armas nucleares; o outro, um barraco e um
velho fuzil Kalashnikov. Mas ambos ilustram um problema global: as cadeias de
fornecimento de alimentos são perturbadas com frequência por homens armados.
Em
29 de outubro, a Rússia afirmou que estava suspendendo sua participação no
acordo que permitiría à Ucrânia exportar grãos pelo mar. O Ministério de
Relações Exteriores afirmou que a Rússia não podia 'mais garantir a segurança
de navios civis de carga seca' que partissem dos portos ucranianos. Já que a
única ameaça a essas embarcações é a própria Rússia, a mensagem foi direta. Os
preços globais do trigo saltaram em 6%, em 31 de outubro, o primeiro dia de
mercado após o anúncio.
Mas,
no mesmo dia, Turquia, Ucrânia e ONU organizaram uma frota de 12 navios que
partiu do porto ucraniano de Odessa para a segurança das águas turcas. A Rússia
não disparou contra as embarcações e, em 2 de novembro, ficou evidente que o
blefe havia sido desmascarado: Putin afirmou que permitiría a retomada da
exportação de grãos. Diplomatas trocaram elogios por terem resistido à
chantagem do déspota russo.
Mas
a saga ilustrou uma verdade desconfortável. A oferta global de alimentos é
vulnerável a homens armados. De fato, das 828 milhões de pessoas que não
conseguem comida suficiente hoje no mundo, quase 60% vivem em países
atormentados por conflitos. Violência armada é o maior obstáculo para o fim da
fome, afirma o Programa de Alimentação Mundial, da ONU.
A
Turquia e a ONU estão tentando persuadir a Rússia a estender por mais quatro
meses o acordo sobre grãos, que dura até o dia 19. A desculpa de Putin para a
suspensão foi risível: a Ucrânia havia atacado alguns navios de guerra russos
na Crimeia, região ucraniana ocupada. Um país invadido atirar contra a Marinha
dos invasores dificilmente surpreende, mas Putin professou ultraje.
Ele
também reclamou que grande parte dos grãos saídos da Ucrânia ia apenas para
países ricos, nada para os pobres. Isso também foi desonesto. Já que os
mercados de grãos são globais, qualquer aumento na oferta diminui os seus
preços em todo o mundo.
A
fragilidade do acordo importa porque ele engendra muito benefício. Entre o
começo de agosto e o fim de outubro, a Ucrânia exportou 9,3 milhões de
toneladas de grãos através do Mar Negro, ajudando a fazer baixar preços de
alimentos.
Em
anos normais, a Ucrânia é uma grande fornecedora de calorias. No ano passado, o
país forneceu 10%, 14% e 47%, respectivamente, de todo trigo, milho e óleo de
girassol negociados globalmente. A Ucrânia costuma escoar 95% de suas
exportações pelos portos no Mar Negro.
As
exportações totais de grãos da Ucrânia caíram de 5 milhões de toneladas, em
fevereiro, para 14 milhão de toneladas, em março, após a Rússia invadir. Até o
mês passado, o acordo permitiu que 4,2 milhões de toneladas partissem através
do Mar Negro. Mantê-la aberta é essencial.
Outros
regimes delinquentes transformaram alimentos em arma de maneiras até mais
diretas do que a Rússia. Em Mekelle, capital de Tigré, as ruas estão cheias de
mulheres e crianças famintas. O preço do tefe, grão básico da alimentação
local, está três vezes mais alto do que em outras partes da Etiópia. Centenas
de milhares passam fome.
Tigré
tem lutado por mais autonomia, e o governo etíope tem buscado combater esse
movimento. Em 2 de novembro, ambos os lados assinaram um cessar-fogo, mas os
tigrinos já se decepcionaram antes. Enquanto isso, forças da Eritréia, aliadas
do governo etíope, têm realizado saques, incendiado plantações.
CONFLITOS.
Entre a pobreza (recentemente exacerbada pela covid) e a seca (tomada mais
comum pelas mudanças climáticas), a fome global tem muitas causas. Todas pioram
com a guerra. Dos dez países com os maiores números absolutos de pessoas em
risco alimentar agudo, todos menos o Sri Lanka são assolados por conflitos.
Na
Somália, não é o governo que está tentando impedir alimentos de chegar aos
cidadãos, são terroristas. O Al-Shabab, grupo jihadista ligado à Al-Qaeda,
controla grandes faixas de território. Um acordo com agências humanitárias
permitiu que alguma ajuda atravessasse as linhas de combate, mas hoje o
Al-Shabab bloqueia a entrada de quase toda a ajuda em seu território, que
inclui as melhores terras agricultáveis da Somália -em meio à sua pior seca em
40 anos.
Nas
semanas recentes, forças do governo e milícias sectárias retomaram vários
distritos do Al-Shabab. A princípio, a notícia é boa para 41% dos somalis em
risco alimentar agudo. Mas à medida que o Al-Shabab é enfraquecido, o grupo
fica mais desesperado e ataca com mais violência a população, roubando gado e
plantações.
Produção de trigo
Em
2021, Ucrânia e Rússia, juntas, foram responsáveis por 30% da produção global
de trigo.
têm
sofrido em meio a muitos conflitos nos anos recentes. Muitos foram forçados a
abandonar suas terras em razão da luta entre o governo eleito, apoiado pelos
americanos, e o Taleban, o grupo jihadista que agora controla o país.
Quem
conseguiu cultivar algum alimento teve dificuldade em lucrar com a produção,
afirma Ibraheem Bahiss, do Crisis Group, um instituto de análise. A caminho do
mercado, eles tinham de pagar 'imposto' no checkpoint do governo, para depois
serem roubados novamente pelos taleban alguns quilômetros adiante.
Um
agricultor da província afegã de Takhar afirma que soldados do antigo governo
tomaram sua terra alguns anos atrás. O Taleban lhe devolveu a propriedade, e
ele plantou trigo. Mas então os preços dos combustíveis e dos fertilizantes
dispararam por causa da guerra na Ucrânia. E, em setembro, o Taleban assinou um
contrato provisório para o Afeganistão comprar trigo barato da Rússia. Isso fez
com que o valor do produto despencasse nos mercados locais. Hoje, 90% dos
afegãos passam fome.
BELICISMO.
Apesar do arrefecimento, o belicismo de Putin afeta a oferta mundial de
alimentos ao dificultar o cultivo de grãos na Ucrânia, colocar em risco sua
exportação e aumentar os preços globais dos hidrocarbonetos, que são usados
tanto no transporte quanto na produção de fertilizantes.
A
Ucrânia espera começar a escoar 20 milhões de toneladas de trigo que colheu
durante o verão. Grandes importadores do Norte da África e do Oriente Médio já
esgotaram as próprias safras e precisam recompor estoques. Os países que mais
precisam das exportações ucranianas, como Egito, Líbano, Sudão e Iêmen, têm
populações agitadas, que podem tomar as ruas se o pão ficar caro demais.
A
inflação sobre o preço dos alimentos é um ingrediente explosivo na Turquia, que
terá eleição no próximo ano. O Programa de Alimentação Mundial obtém na Ucrânia
metade do trigo que distribui para populações carentes em outros países.
Se
o acordo do Mar Negro não for estendido, a Ucrânia seria capaz, em teoria, de
exportar mais grãos por rotas alternativas do que lhe foi possível antes de
julho. Carlos Mera, do banco holandês Rabobank, observa que o país hoje seria
capaz de escoar 3 milhões de toneladas ao mês por ferrovias e outros 2 milhões
de toneladas por rodovias ou hidrovias.
Mas
a Rússia está determinada em destruir a infraestrutura civil dos ucranianos com
ataques de mísseis e drones kamikazes. Grãos que anteriormente eram
transportados da fazenda para o porto por meio de sistemas logísticos
automatizados podem ter de ser movimentados em carregamentos menores. Isso pode
elevar os custos de transporte de US$ 3 a US$ 5 a tonelada para US$ 50 ou mais.
O
ministro da Agricultura da Ucrânia, Mikola Solski, estimou que os fazendeiros
ucranianos -com pouca água, poucos funcionários e muitas bombas não detonadas
em seus campos - semeariam 20% menos trigo neste outono do que haviam planejado.
Outros
produtores poderíam, talvez, exportar mais. A Austrália teve este ano sua maior
colheita de trigo da história (36 milhões de toneladas, em comparação com 31
milhões em 2021), e a Rússia teve uma colheita recorde de grãos de verão (94
milhões de toneladas.
EXPORTAÇÕES.
Por vários meses, as exportações de trigo da Rússia foram vagarosas, em parte
porque os navios que atravessam o Mar Negro tiveram dificuldades para obter
seguros (a exportação de alimentos do país não está sujeita às sanções do
Ocidente). Em outubro, contudo, as exportações russas explodiram. Enquanto
isso, EUA e Europa registraram colheitas menos desastrosas do que haviam
temido; e Brasil e índia, que não figuram normalmente entre os grandes
exportadores de trigo, conseguiram vender no exterior parte de suas safras.
Tudo
isso ajudou a refrear os preços globais (apesar de os valores permanecerem mais
elevados do que em 2021). Mas no próximo ano essa combinação entre clima favorável
e controle de danos parece difícil de se repetir. A Rússia poderá não ter outra
safra colossal. EUA e Europa ainda estão recebendo pouquíssima chuva, o que
poderá reduzir a colheita de trigo. Na Argentina, a maior exportadora de trigo
do Hemisfério Sul, a previsão é que a seca reduzirá a safra. Enchentes e falta
de capacidade portuária dificultam para a Austrália elevar suas exportações.
A
guerra de Putin também elevou os custos dos fertilizantes ao aumentar o preço
do gás natural, insumo crucial para sua produção. Os fertilizantes estão 2,5
vezes mais caros do que no início de 2020. Durante o primeiro semestre deste
ano, a indústria europeia de fertilizantes funcionou a 30% de sua capacidade.
Fazendeiros
em países ricos puderam contar com antigos estoques de fertilizantes, assim
como deixar de realizar algumas aplicações não essenciais para a produtividade
a curto prazo. No próximo ano, eles poderão decidir usar menos, considera Seth
Meyer, do Departamento de Agricultura dos EUA. Isso prejudicaria a produção.
Muitos países mais pobres já estão sem fertilizantes.
Colômbia
e Peru buscam acalmar o descontentamento em zonas rurais subsidiando compras. A
firma de análise de dados Gro Intelligence calcula que as aplicações reduzidas
de nitrogênio projetadas para a próxima safra poderiam resultar em perdas de
produção de trigo, milho, soja e arroz equivalentes a 216 trilhões de calorias
mundialmente - o suficiente para alimentar 240 milhões de homens adultos por um
ano.
Quando
a oferta não consegue crescer, a demanda é obrigada a se ajustar. Muitas
pessoas estão consumindo menos carne, leite e queijo, que são alimentos mais
caros. A demanda por biocombustível feito de soja e milho também caiu. Mas a
demanda por trigo não tem diminuído, em parte porque muitos governos subsidiam
sua compra.
O
resultado é que, pelo terceiro ano consecutivo, o mundo vai consumir mais grãos
do que produz. Mais preocupante ainda, os estoques mantidos pelos grandes
exportadores têm diminuído há anos em razão de safras ruins. Na Rússia e na
Ucrânia, os grãos que não puderem ser exportados poderão ser estocados. Mas em
outros países, a relação estoque-uso está projetada para cair de 22%, em 2019,
para menos de 12% em 2023 e 11% em 2024.
Para
trazer os estoques de volta a níveis seguros, o mundo precisa de safras-tampão
consecutivas. Mas, em vez disso, diz o consultor em commodities Jean-François
Lambert, energia cara, água escassa e a guerra germinaram as sementes de um
'déficit estrutural de alimentos'.
Em
países importadores, a inflação sobre o preço dos alimentos será amplificada
pela força do dólar, moeda na qual o valor de muitas commodities é cotado.
Governos de vários países poderão ter de escolher entre subsídios que não são
capazes de bancar ou inflação sobre preços de alimentos que provocam
insurreições.
CRIANÇAS.
No Brasil, um país de renda média, a proporção de pessoas que passam fome em
algum momento saltou de 9%, no fim de 2020, para 15%, ou 33 milhões de pessoas,
segundo a Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e
Nutricional. Como resultado, 'vemos muitas crianças que não estão se
desenvolvendo apropriadamente', afirma Rodrigo Afonso, diretor da ONG Ação da
Cidadania. 'Se você não alimenta uma criança, ela sofre problemas de
desenvolvimento físico e intelectual por toda a vida.'
Esse
pode ser o pior dos legados da guerra de Putin. Milhões de crianças se tomarão
adultos menos inteligentes - e portanto levarão vidas mais pobres e menos
produtivas.
Exportação
4,2 milhões de toneladas de grãos puderam ser
exportados pela Ucrânia em meio ao acordo com Rússia.
'Se você não alimenta uma criança, ela sofre
problemas de desenvolvimento físico e intelectual por toda a vida'
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