Aumenta o número de negócios em modelos digitais, forçando novas interpretações da legislação tributária
Já foi o tempo em que os operadores do direito lidavam
com contratos semelhantes diariamente, todos devidamente adequados às previsões
de um negócio jurídico regulamento por lei. A chamada 'era digital' é
caracterizada, dentre outros aspectos, pela utilização de modelos criativos de
atividades mercantis, dando espaço para negócios jurídicos inovadores e
atípicos que, na maioria das vezes, força uma interpretação também inovadora da
lei.
No campo do direito tributário, especialmente conectado
ao princípio da legalidade, o desafio passa a ser encontrar a relação dos novos
modelos de negócios com a previsão de incidência tributária, ou, ao menos,
buscar a segurança para justificar uma suposta não incidência. Sob a ótica do
Estado, o movimento passa a ser na direção da criação de políticas públicas que
visem aumentar a fiscalização e evitar a redução de receitas tributárias decorrentes
do possível não alcance das hipóteses de incidência sobre os contratos não
tradicionais.
Os governos de todo o mundo iniciaram, então, estudos e
editaram normas com o objetivo de obter maiores informações e controle sobre o
correto recolhimento dos tributos nas operações relacionadas à economia
digital. A crise da Covid-19 exacerbou essas tensões, acelerando a
digitalização da economia e aumentando as pressões sobre as finanças públicas.
A OCDE e o G20 discutem, no âmbito do Plano de Ação 01
do Base Erosion and Profit Shifting (BEPS), as propostas de reforma das regras
de tributação do comércio digital internacional, que são objeto dos relatórios
dos Pilares 1 e 2.
O Pilar Um tem por fim identificar formas de adaptar o
sistema tributário internacional a novos modelos de negócios por meio de um
sistema coerente e pela revisão simultânea da alocação de lucros e das regras
de conexão entre as operações e as jurisdições (atenção especial às
multinacionais), assim como busca a o aumento da segurança jurídica através de
mecanismos inovadores de prevenção e resolução das disputas.
Por sua vez, o Pilar Dois visa garantir que grandes
empresas internacionais operacionais paguem um nível mínimo de imposto,
independentemente de onde estão sediadas ou das jurisdições em que operam.
Seguindo essa ordem de ideias, os governos federal e dos
estados da federação brasileira também têm se movimentado no sentido de
promover medidas que evitem a perda da tributação quando se trata de negócios
inovadores, desenvolvidos com base na tecnologia.
Exemplo disso é a proposta de responsabilização das
plataformas digitais pelo recolhimento de contribuição incidente sobre a
receita bruta devida na operação realizada por seu intermédio quando a pessoa
jurídica vendedora não registrar a venda mediante a emissão de documento fiscal
eletrônico. Essa previsão integra a primeira etapa (ainda não concluída) da
reforma tributária apresentada pelo governo federal através do PL 3887/2020,
que visa a instituição da Contribuição Social sobre Operações com Bens e
Serviços (CBS) em substituição às contribuições ao PIS e a Cofins[1].
Há, ainda, normas do Confaz que dispõem sobre o
fornecimento de informações prestadas pelos marketplaces, a exemplo do Convênio
ICMS 71/20, que trata da apresentação de todas as informações relativas às
operações realizadas pelas plataformas e usuários de seus serviços.
Muitas vezes baseados nas normas do Confaz, os estados
têm buscado criar modelos que os auxiliem na fiscalização das operações de
comércio eletrônico, inclusive responsabilizando os marketplaces pelo ICMS
devido nas vendas que ocorrerem por intermédio de suas plataformas. Alguns
exemplos são os estados de São Paulo (Lei nº 13.918/2009) e Mato Grosso (Lei nº
11.081/2020), que atribuem responsabilidade solidária às operadoras de
marketplace na hipótese de descumprimento da obrigação de prestação de informações
a respeito das operações por elas intermediadas.
O estado da Paraíba (Lei nº 11.615/2019), noutra mão,
atribui a responsabilidade às plataformas por todas as operações em que o
pagamento também for por elas intermediado, independentemente de qualquer
infração. No Ceará (Lei nº 16.904/2019), mais uma vez em Mato Grosso (Lei nº
10.978/2019) e na Bahia (Lei nº 14.183/2019) as operadoras de marketplace são
consideradas responsáveis solidariamente pelo ICMS devido em relação às
operações por elas intermediadas, na hipótese de o contribuinte (vendedor) não
emitir o correspondente documento fiscal.
Cite-se, ainda, o estado do Rio de Janeiro (Lei nº
8.795/20), que inclui entre os contribuintes do imposto a pessoa jurídica
detentora de site ou de plataforma eletrônica que realize a venda ou a
disponibilização de bens e mercadorias digitais mediante transferência
eletrônica de dados.
Em todos esses casos, é atribuída obrigação acessória e
a responsabilidade pela obrigação principal do ICMS à operadora da plataforma
digital, que nada mais é do que um prestador de serviços de intermediação do
negócio a ser celebrado entre compradores e vendedores. A comissão, ou o preço
do serviço prestado, em geral, é uma taxa incidente sobre o valor total da
operação e não a receita com a venda do produto.
Além dos diversos possíveis questionamentos a essas
normas em face do descumprimento de preceitos constitucionais - como o
princípio da capacidade contributiva e a reserva de lei complementar - e legais
com base no CTN e na Lei Complementar nº 87, um aspecto pouco abordado quando
se fala em direito tributário é essencial para o estudo da matéria: a análise
econômica do direito.
A Lei de Liberdade Econômica (Lei nº 13.874/19)
estabelece que:
'Art. 5º: As propostas de edição e de alteração de atos
normativos de interesse geral de agentes econômicos ou de usuários dos serviços
prestados, editadas por órgão ou entidade da administração pública federal,
incluídas as autarquias e as fundações públicas, serão precedidas da realização
de análise de impacto regulatório, que conterá informações e dados sobre os
possíveis efeitos do ato normativo para verificar a razoabilidade do seu
impacto econômico'.
Essa previsão se alinha ao conceito de regulação
responsiva, segundo a qual a regulação pelo Estado deve ser responsiva às
características dos particulares porque diferentes sujeitos deverão se submeter
a diferentes graus e formas de regulação, já que possuem distintas motivações
para cumprirem ou não com as leis. Assim, a regulação eficiente deve conversar
com os variados objetivos dos particulares de forma que o Estado os auxilie a
cumprirem com suas obrigações e, em contrapartida, os regulados auxiliem os
reguladores no desenvolvimento de um ambiente regulatório adequado.
No mesmo sentido, a regulação deve ser eficiente do
ponto de vista econômico, ou seja, o seu custo não pode ser maior que o
benefício, tanto para o regulador, quanto para o regulado. E, por custo,
entende-se não apenas custo financeiro e contábil, mas também custos de transação
e de conformidade, que são os principais criados quando se institui obrigações
acessórias como as do tipo tratadas neste artigo.
Assim, embora a regulação seja o instrumento utilizado
pelo Estado para interferir no comportamento dos particulares para alcançar
seus objetivos, não pode ser aplicada arbitrária e desproporcionalmente, sob
pena de afetar negativamente mercados e a sociedade como um todo. Nesse ponto
se encontra a importância da Análise de Impacto Regulatório (AIR), conceituada
como:
'o processo sistemático de análise baseado em evidências
que busca avaliar, a partir da definição de um problema regulatório, os
possíveis impactos das alternativas de ação disponíveis para o alcance dos
objetivos pretendidos, tendo como finalidade orientar e subsidiar a tomada de
decisão'.[2]
O que o legislador criou com a LLE foi, portanto, a
obrigatoriedade de avaliação pelo regulador dos possíveis impactos gerados pela
alteração legislativa, de forma a evitar a interferência econômica arbitrária e
desproporcional.
A AIR, que pode ser considerada como a fase ex ante de
avaliação de uma política pública regulatória, é aquela por meio da qual os
agentes julgam os efeitos da solução a ser colocada em prática através de
critérios como a eficácia, a eficiência administrativa, a produtividade, a
economicidade, a equidade e a eficiência econômica, fundamentados em
indicadores técnicos[3].
De forma mais sintética, como dito algumas linhas, por
meio de analise custo-benefício, tenta-se mensurar e prever, na medida do
possível, as consequências advindas da nova regulação.
Ora, a imposição de responsabilidades tributárias aos
intermediários de operações comerciais em relação a fatos geradores que não
lhes dizem respeito, obviamente, gera grave impacto econômico para os marketplaces.
As normas estaduais resultam em altos encargos relacionados aos custos de
conformidade, aumentam significativamente os riscos de serem as plataformas
cobradas pelo imposto do qual não são contribuintes, aumentam os preços
cobrados pelas plataformas, desestimulam investimentos no setor e acabam
gerando distorções no mercado.
A AIR serve, assim, de importante instrumento para o
poder público compreender esses impactos previamente à imposição de uma norma
regulatória, evitando, muitas vezes, as graves consequências de uma decisão
tomada sem fundamentos, passível de provocar aumento expressivo de custos para
os agentes econômicos ou para os usuários dos serviços prestados, repercutindo
nas políticas públicas econômicas e sociais.
Vale lembrar que, embora o art. 1º exclua alguns
dispositivos da LLE da aplicação em matéria tributária e financeira o art. 5º,
que trata da análise de impacto econômico (AIR), está fora dessa relação,
aplicando-se, assim, ao direito tributário, desde que a norma seja editada por
órgão da administração federal[4].
Nesse sentido, a Coordenação-geral de Assuntos
Tributários (CAT/PGFN) assim concluiu o seu PARECER SEI Nº 8131/2021:
'12. Por outro lado, parece-nos, à guisa de entendimento
preliminar sobre o caso, que o AIR deve ser elaborado nas hipóteses de eventual
edição, alteração ou revogação de ato normativo de natureza tributária que
tenha como objeto obrigações acessórias, cujos efeitos envolvam, além da
administração tributária dos Estados e Distrito Federal, a administração tributária
e aduaneira da União'.
Embora afirme que não há procedimentos definidos sobre a
forma como o AIR deve ser feito, a Receita Federal tem apresentado ao Confaz
diversas Notas Técnicas indicando a desnecessidade de AIR para a edição de
Ajustes e Convênios, com fundamentação extremamente superficial para tanto.
Desde julho de 2021, data da primeira das Notas Técnicas disponibilizadas no
site do Confaz, até os dias atuais, é informado que inexiste procedimento sobre
o AIR porque as propostas de convênio não foram aprovadas, demonstrando nítida
omissão do órgão nesse quesito.
Ainda assim, não há dispensa de AIR para o Convênio
71/20, acima mencionado. Isso significa que é eivado de ilegalidade esse
convênio, o qual suporta diversas as leis estaduais que criam as obrigações
acessórias aos marketplaces. Por conseguinte, a responsabilidade pelo
recolhimento do ICMS decorrente do descumprimento da obrigação acessória pelo
operador da plataforma também não pode ser considerada válida à luz da LLE.
Sobre a aplicação do dispositivo da LLE que trata da
AIR, o regulamento (Decreto n? 10.411/20) determina que a exigência passou a
valer apenas em 15 de abril de 2021 para o Ministério da Economia (de que o
Confaz é órgão). Contudo, recentemente um julgado do TCU esclareceu sobre a
obrigatoriedade do AIR mesmo antes da entrada em vigor do regulamento, como se
vê pelo trecho abaixo transcrito:
Contudo, considera-se que o art. 6º da Lei 13.848/2019
(?) e o art. 5º da Lei 13.874/2019 estabeleceram a exigência da AIR e que,
enquanto inexistente o regulamento a que eles se referem, é aplicável o Guia
Orientativo para Elaboração de Análise de Impacto Regulatório (AIR) da Casa
Civil da Presidência da República, uma vez que a ausência de elaboração de AIR
em processos de alteração normativa que afetem os interesses de agentes
econômicos e usuários feriria o princípio da razoabilidade, da eficiência e do
interesse público, bem como recomendação deste Tribunal (item 9.1.1 do Acórdão
240/2015-TCU-Plenário, de relatoria do Ministro Raimundo Carreiro), não sendo o
caso de se aguardar a edição de regulamento quando já existe o Guia Orientativo
para Elaboração de Análise de Impacto Regulatório (AIR) da Casa Civil da
Presidência da República, de cuja formulação a Antaq participou. (TCU. TC
021.408/2019-0. Sessão de 22/06/22)
Veja-se, assim, que a elaboração de AIR já era exigida
mesmo antes da entrada em vigor do Decreto nº 10.411/20, em especial nos casos
em que a alteração normativa afetasse os interesses de agentes econômicos, como
é o caso da regulamentação da atividade dos marketplaces.
Mesmo que a LLE não se aplique às normas estaduais - vez
que os legisladores estaduais sujeitar-se-ão à obrigatoriedade de elaboração de
AIR apenas quando as leis de liberdade econômica de cada ente vierem a trazer
essa previsão - a obrigatoriedade do AIR pelo Confaz é suficiente para eivar de
vícios as normas estaduais.
Por exemplo, em Minas Gerais, o Decreto nº 48.082/20 foi
editado em decorrência da internalização do Convênio ICMS 71/20. O decreto em
questão incluiu no RICMS, entre os documentos fiscais, as informações prestadas
pelos intermediadores de serviços e de negócios, relativas às operações e às
prestações que tenham intermediado e que envolvam estabelecimentos de
contribuintes localizados em MG. Por sua vez, o art. 21 da Lei Estadual nº
6.763/75, determina a responsabilidade solidária pela obrigação tributária aos
marketplaces em relação às operações ou às prestações sobre as quais tenham
deixado de cumprir a obrigação de prestar informações ao Fisco, nos termos do
regulamento.
A consequência lógica, portanto, é de que o Estado não
poderia impor a obrigação acessória aos marketplaces por ilegalidade do
Convênio Confaz e, assim, a responsabilidade solidária pela obrigação principal
não seria aplicável ao caso, por força da Lei de Liberdade Econômica.
[1] PIRES, Gabriela Cabral,
BERNARDES, Flávio Couto. COMPLIANCE E RESPONSABILIDADE TRIBUTÁRIA NAS
ATIVIDADES DE INTERMEDIAÇÃO NOCOMÉRCIO ELETRÔNICO. In: Direito, democracia e
mudanças institucionais: homenagem ao ProfessorAdélman de Barros Villa.1
ed.Teresina: PPGD-UFPI, 2021, v.1.
[2] Diretrizes gerais e guia
orientativo para elaboração de Análise de Impacto Regulatório - AIR / Subchefia
de Análise e Acompanhamento de Políticas Governamentais [et al.]. -Brasília:
Presidência da República, 2018. Disponível em: https://www.gov.br/economia/
[3] BERNARDES, Flávio C.; PIRES,
Gabriela C.; FREIRE, Ana Paula R.. As políticas públicas tributárias de
benefícios fiscais e o federalismo. In.: A Crise do Federalismo em estado de
pandemia. Belo Horizonte: Letramento Ed. E Livraria, 2021. Pg. 134-154.
[4] O Decreto n? 10.411/20, que
regulamenta da LLE, ao tratar da AIR, determina que, no âmbito da administração
tributária e aduaneira da União, as disposições aplicam-se somente aos atos
normativos que instituam ou modifiquem obrigação acessória. Observe-se que o
decreto extrapola a previsão legal, ao reduzir a obrigação da administração,
tornando o AIR dispensável no caso de obrigações principais, capazes de gerar
impactos econômicos ainda mais graves do que as acessórias.
Jota, Cristiano Carvalho Gabriela
Cabral Pires
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