"Sem investimentos pesados, metade das rodovias ficará em má condição de tráfego". Cesar Borges.
Político experiente, com passagens pelo governo da Bahia e pelo Senado Federal, o ex-ministro dos Transportes no governo Dilma Rousseff, César Borges, 69 anos, traça um cenário alarmante para a infraestrutura no Brasil. Segundo ele, o setor vive um apagão diante da escassez de recursos estatais, da falta de prioridade dentro do governo e da inação de agentes públicos que temem ser punidos por órgãos de controle, como o Tribunal de Contas da União (TCU). Atualmente à frente da Associação Brasileira de Concessionárias de Rodovias (ABCR), que reúne 59 empresas, Borges busca uma solução para o impasse em torno da viabilidade de cerca de 5.000 Km de rodovias privatizadas que foram impactadas pela mudança abrupta de cenário.
DINHEIRO – Falta recurso para infraestrutura no Brasil?
CÉSAR BORGES – Certamente falta. A infraestrutura é altamente deficiente. O principal modal no Brasil é o rodoviário. Foi escolhido pelos seus dirigentes desde a metade do século passado. Em torno de 60% das cargas transitam por rodovia. Enquanto hoje tem 210 mil km de rodovias pavimentadas, não há 20 mil km de ferrovias operacionais. Durante os próximos 20 anos, 30 anos, o Brasil ainda vai funcionar em cima do modal rodoviário. Estamos sem investimentos porque o governo federal não tem recursos. Não haverá retomada do crescimento sem uma infraestrutura adequada. E, se houver, o sobrepreço que vai se pagar por falta de infraestrutura será grande, ao se usar, por exemplo, caminhões por um trecho médio de 1.100 km.
DINHEIRO – Estamos utilizando mal o modal rodoviário?
BORGES – É a única opção. Acima de 400 km, porém, ele passa a ter um custo adicional, é improdutivo. Essa carga deveria ser transportada por trem, até 1.100 km, depois por navio. Se olhar no horizonte, até 2035, não se vê grandes investimentos ferroviários. Temos de manter principalmente as condições do que existe hoje. Se não houver investimentos públicos nas rodovias que não são concessionadas, que é a grande malha, haverá problemas. De 210 mil km pavimentados no Brasil, apenas 20 mil km estão sob concessão. Só de trechos federais, são 65 mil km no total e 10 mil km concessionados. Os outros 55 mil km são administrados pelo Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit), que não tem verba suficiente para a manutenção. Sem investimentos pesados, metade dessas rodovias ficará em má situação de tráfego em 2025.
DINHEIRO – Por que o governo não está conseguindo leiloar novas estradas?
BORGES – O projeto não é feito antecipadamente. O Brasil deveria ter projetos em prateleira, para que cada governo pudesse escolher o que fazer a qualquer hora. O governo atual demorou e, depois de dois anos, mandou ao Tribunal de Contas da União (TCU), que pediu mudanças. Esperamos que possa sair ao menos um edital de concessão rodoviária neste governo, o da Rodovia de Integração do Sul.
DINHEIRO – O senhor acredita que saia?
BORGES – Espero que sim. Falta ao governo uma centralidade na condução dos projetos. Ficam muito difusos e não saem no espaço de tempo que seria interessante ao País.
DINHEIRO – Como resolver isso?
BORGES – Dando centralidade. Quando tem de ouvir diversos organismos para poder chegar à formulação de um projeto, fica difícil. Tem de ter centralidade, empoderar um ministério e ele ser o responsável. Ter agências reguladoras profissionalizadas, que possam não ter receio da decisão que tomem. Não pode a toda hora o TCU reformular as decisões da agência e até penalizar o dirigente que tomou a decisão. Isso leva ao apagão das canetas e a uma infantilização do agente público. Infraesturutura é um problema da nação. Nenhum governo é um bom gestor de estradas.
DINHEIRO – O presidente Temer assumiu dizendo que infraestrutura seria prioridade. Faltou dar esse peso?
BORGES – Não há prioridade. Em 2013, o orçamento do Ministério dos Transportes era de R$ 15 bilhões. Para 2019, se fala num orçamento de R$ 6 bilhões. Não dá sequer para a manutenção da malha existente.
DINHEIRO – Na sua avaliação, há um superativismo dos órgãos de controle?
BORGES – Sempre existe, por conta da fragilidade do Executivo. À medida que não se impõe, o órgão de controle ocupa o espaço e passa a ditar a política pública e a intervir.
DINHEIRO – Qual deveria ser o papel do Executivo?
BORGES – O órgão de controle não é eleito, é indicado. Aquele que vai para o governo, com legitimidade das urnas, deve dizer quais são as políticas públicas e o que é melhor para o País.
DINHEIRO – A gestão Temer falhou nesse sentido?
BORGES – O governo Temer tentou colocar o País numa condição macroeconômica melhor. Teve até sucesso. Exacerbou um pouco a questão do presidencialismo de coalizão, negociou os ministérios com os partidos e ficou muito na área política. Não sobrou tempo para tocar as áreas específicas, afins, que é o caso da infraestrutura. De 2014 para cá, não foi feito nenhuma licitação de estrada nova no Brasil.
DINHEIRO – Algumas empresas estão tendo de devolver as concessões de estradas. Por que isso ocorreu? Houve falha nos leilões?
BORGES – São diversos fatores. Primeiro porque os projetos foram concebidos em 2012. Na época, era a visão de um país crescendo, decolando. Quando veio 2014, entramos na crise, depois em recessão. Isso desequilibrou os contratos. Outra era que até 75% seria financiado pelo BNDES. Mas o banco demorou dois anos para dar o empréstimo de longo prazo e, nesses dois anos, analisou o tráfego em cima da crise. A demanda se reduziu em até 30% em algumas rodovias. Isso desequilibra qualquer previsão de pagamento do projeto. Além disso, ainda houve a Lava Jato, e o BNDES disse que não ia financiar quem tivesse qualquer mancha no cadastro. Com isso, projetos ficaram inviáveis. Lamentavelmente, 5.000 km dessa terceira etapa de concessões foram afetados, ou seja, 50% das vias concessionadas. Se não resolver esse problema, o Brasil vai perder.
DINHEIRO – Qual é a situação dessas empresas agora?
BORGES – Algumas estão esperando uma posição do governo, que não aceitou repactuar os termos dos contratos. Foi aventada, no segundo semestre de 2016, a possibilidade de devolução amigável do trecho para essas empresas em dificuldades, através da Medida Provisória 752. O texto foi aprovado no Congresso e transformado em lei em junho de 2017, mas precisa de um decreto de regulamentação que até hoje não saiu. Nesse meio tempo, o governo se convenceu que precisava criar uma saída para as concessões que não queriam devolver e tinham capacidade de executar os investimentos previstos. Editou uma nova Medida Provisória, que caducou. Ficou sem nenhuma solução. É preciso que se negocie com as empresas uma saída, tipo a da Medida Provisória. Nela, o prazo para investimentos foi prorrogado de cinco anos por até 14 anos. A pior saída é a devolução. Vamos retroagir em 5.000 km de rodovias que estão concessionadas. Hoje, não tem novos investimentos, mas o nível de serviço das rodovias está sendo mantido. As empresas não têm condições de continuar assim.
DINHEIRO – Que lição esse episódio deixa para o futuro?
BORGES – Ninguém tinha bola de cristal sobre a recessão. É tipo um acidente. Quando acontece, tem de mitigar, minimizar.
DINHEIRO – Se tiver uma recessão amanhã, significa que outras empresas terão de devolver a concessão?
BORGES – Sim, claro. Uma recessão dessa não encontra cobertura em nenhuma seguradora. Não se conhece uma companhia de seguros que possa, por maior que seja o prêmio, oferecer um seguro para uma rodovia que cubra uma recessão.
DINHEIRO – O risco não era do concessionário?
BORGES – O risco é da empresa, mas simplesmente ela não executa. Vai fazer o quê? Tomar o trecho? Pode tomar. O governo pode caducar. Pergunta se o Dnit e a ANTT querem declarar a caducidade desses trechos? É o pior dos mundos. Além de ter problema judicial, vai demorar e o usuário será prejudicado.
DINHEIRO – Esse episódio pode afastar investidores do Brasil?
BORGES – Não. O investidor está ávido por bons projetos. Projetos factíveis, que tenham segurança jurídica e possíveis de serem realizados. Se dividir o número de rodovias duplicadas por quilômetros quadrados de área, vamos ver que estamos seis vezes atrás da China, 16 vezes atrás dos EUA ou da Europa.
DINHEIRO – Há candidatos à Presidência que defendem um peso maior do Estado no investimento de infraestrutura. Faz sentido?
BORGES – Tem de dizer de onde vai tirar esse dinheiro, porque o Estado brasileiro hoje tem um déficit brutal, que não deve ser resolvido nos próximos oito, dez anos. O governo é um meio, não é o fim.
DINHEIRO – O senhor fala em crise do presidencialismo de coalização e se queixa do trâmite parlamentar de medidas do setor. Qual é a solução para o bom funcionamento institucional do País?
BORGES – Seria uma reforma política onde você pudesse ter um melhor relacionamento entre Executivo e Legislativo, onde o Legislativo aprove o que é importante ao País. Não é isso que vimos na história recente. Ainda no governo Dilma se criou a pauta bomba. Não pode. A pauta é a favor do País. Hoje só se pensa numa política partidária de alcançar o poder.
DINHEIRO – Na rodada de concessões de 2014, houve um esforço para limitar a taxa de retorno. Houve prejuízo para as ofertas?
BORGES – Não. A TIR (Taxa Interna de Retorno) foi fixada inicialmente em 5,5%. Depois elevamos para 7,2%. É apenas um dado para chegar ao valor máximo da tarifa. Nas concessões de 2013, esse valor médio saiu de R$ 5 para R$ 9 do pedágio. Foi ao leilão adaptada e as empresas entraram e ganharam com 50% de deságio. Elas acreditavam que a demanda ia crescer. Não houve aventureiras. Acreditaram nos números apresentados, pensaram que estavam subestimados na demanda de tráfego e que o Brasil ia crescer mais. Só que isso não se realizou.
DINHEIRO – A presença pesada do BNDES não criou um artificialismo?
BORGES – Não tenho dúvida de que a presença do BNDES, financiando 75% com juros de 5,5% e mais 2% de spread, favoreceu a entrada de investidores. Foi isso que o governo ofertou. Um ponto muito importante é que o governo, para ter sucesso no leilão, apresenta um ambiente idealizado, oferecendo ao participante condições para que se sentisse atraído para fazer a oferta. E ele aventava que poderia ser financiado até 75% do projeto. Com isso, as empresas vieram.
DINHEIRO – Um estudo do TCU apontou reajuste acima da inflação mesmo com investimentos não cumpridos nas rodovias concessionadas. Houve leniência do regulador?
BORGES – Houve um equívoco por parte do tribunal. Não existe reajuste acima da inflação. O reajuste é feito em cima do reequilíbrio econômico do contrato. Quando faz um incremento de uma obra nova porque houve necessidade, quando tem uma lei que não existia, um imposto novo, uma lei de caminhoneiros onde o eixo suspenso que era pago deixa de ser pago, tem de reequilibrar. Tem acréscimos tarifários em função disso, não só a inflação. Há três métodos de reequilíbrio: através da tarifa, de extensão de prazo de concessão ou o poder concedente pagando o investimento. O problema é que o TCUnão quer nenhum.
DINHEIRO – Como conseguir o melhor equilíbrio entre custo e qualidade?
BORGES – Precisa saber se esse caro é real ou subjetivo. Ninguém gosta de pagar. Numa estrada concessionada há mais segurança, serviço de atendimento ao usuário, assistência mecânica e médica. A estrada mais cara no mundo é aquela que você não tem.
Por Gabriel Baldocchi, na Revista Isto É Dinheiro
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