"Quando
for escrita a história econômica do Brasil nos últimos 50 anos, várias coisas estranhas
acontecerão. A política de autonomia tecnológica em informática, dos anos 70 e
80, aparecerá como uma solene estupidez, pois significou uma taxação da
inteligência e uma subvenção à burrice dos nacionalistas e à safadeza de
empresários cartoriais.
Campanhas
econômico-ideológicas como a do "o petróleo é nosso" deixarão de ser descritas
como uma marcha de patriotas esclarecidos, para ser vistas como uma procissão
de fetichistas anti-higiênicos, capazes de transformar um líquido fedorento num
unguento sagrado. Foi uma "passeata da anti-razão" que criou sérias
deformações culturais, inclusive a propensão funesta às "reservas de
mercado".
A
criação do monopólio estatal de 1953 foi um pecado contra a lógica econômica. Precisamente
nesse momento, o ministro da Fazenda, Oswaldo Aranha, mendigava um empréstimo
de US$ 300 milhões ao Eximbank, para cobertura de importações Correntes
(inclusive de petróleo). A ironia da situação era flagrante: de um lado, o país
mendigava capitais de empréstimos que agravariam sua insolvência, de outro,
pela proclamação do monopólio estatal, rejeitava capitais voluntários de risco.
Ao invés de sócios complacentes (cuja fortuna dependeria do êxito do país),
preferíamos credores implacáveis (que exigiriam pagamento, independentemente
das crises internas). Esse absurdo ilogismo levou Eugene Black, presidente do
Banco Mundial, a interromper financiamentos ao Brasil durante cerca de dez anos
(com exceção do projeto hidrelétrico de Furnas, financiado em 1958). Houve
outros subprodutos desfavoráveis.
Criou-se
uma cultura de "reserva de mercado", hostil ao capitalismo
competitivo.
Surgiu
uma poderosa burguesia estatal que, protegida da crítica e imune à
concorrência, acumulou privilégios abusivos em termos de salários e
aposentadorias.
Criou-se
uma falsa identificação entre interesse da empresa e interesse nacional, de sorte
que a crítica de gestão e a busca de alternativas passaram a ser vistas como
traição ou impatriotismo.
Vistos
em retrospecto, os monopólios estatais de petróleo, que se expandiram no Terceiro
Mundo nas décadas de 60 e 70, longe de representarem um ativo estratégico, tornaram-se
um cacoete de países subdesenvolvidos na América Latina, África e Médio Oriente.
Nenhum país rico ou estrategicamente importante, nem do Grupo dos 7 nem da OCDE,
mantém hoje monopólios estatais, o que significa que os monopólios não são necessários
nem para a riqueza nem para a segurança estratégica.
"Essas
considerações me vêm à mente ao perlustrar os últimos relatórios da
Petrossauro.
Ao
contrário de suas congêneres terceiro-mundistas, que são vacas-leiteiras dos respectivos
Tesouros, a Petrossauro sempre foi mesquinha no tratamento do acionista majoritário.
Tradicionalmente,
a remuneração média anual do Tesouro, sob a forma de dividendos líquidos, não
chegou a 1% sobre o capital aplicado. Após a extinção de jure do monopólio, em
1995(ele continua de facto), e em virtude da crítica de gestão e da pressão do
Tesouro falido, os dividendos melhoraram um pouco, ma non troppo.
Muito
mais generoso é o tratamento dado pela Petrossauro à Fundação Petros, que representa
patrimônio privado dos funcionários.
A
empresa é dessarte muito mais um instituto de previdência, que trabalha para os
funcionários, do que uma indústria lucrativa, que trabalha para os acionistas.
Aliás, é duvidoso que a Petrossauro seja uma empresa lucrativa. Lucro é o
resultado gerado em condições competitivas. No caso de monopólios, é melhor
falar em resultados. Quanto à Petrossauro, se fosse obrigada a pagar os
variados tributos que pagam as multinacionais aos países hospedeiros-bônus de
assinatura, royalties polpudos, participação na produção, Imposto de Renda e
importação-teria que registrar prejuízos constantes, pois é alto seu custo de
produção e baixa sua eficiência, quer medida em barris/dia por empregado, quer
em venda anual por empregado.
Examinados
os balanços de 1995 a 1998, verifica-se que o somatório dos dividendos ao Tesouro
(pagos ou propostos) alcançam R$ 1,606 bilhão enquanto que as doações à Petros
atingiram 2,054 bilhões.
Considerando
que o Tesouro representa 160 milhões de habitantes e vários milhões de contribuintes,
enquanto que a burguesia do Estado da Petrossauro é inferior a 40 mil pessoas,
verifica-se que é o contribuinte que está a serviço da estatal e não vice-versa.
Nota-se
hoje no Governo uma perigosa tendência de postergação das privatizações seja na
área de petróleo, seja na área financeira, seja na eletricidade. É um erro
grave, que põe em dúvida nosso sentido de urgência na solução da crise e nossa
percepção dos remédios necessários. A privatização não é uma opção acidental
nem coisa postergável, como pensam políticos irrealistas e burocratas
corporativistas. É uma imposição do realismo financeiro. Há duas tarefas de
saneamento imprescindíveis. A primeira consiste em deter-se o "fluxo"
do endividamento (o objeto mínimo seria estabilizar-se a relação
endividamento/PIB). Essa é a tarefa a ser cumprida pelo ajuste
"fiscal".
A
segunda consiste em reduzir-se o estoque da dívida. Esse o objetivo da reforma "patrimonial",
ou seja, a "privatização".
Não
se deve subestimar a contribuição potencial da reforma patrimonial para a
solução de nosso impasse financeiro. Tomemos
um exemplo simplificado.
Apesar
da crise das Bolsas, a venda do complexo Petrossauro-BR Distribuidora poderia gerar
uma receita estimada em R$ 20 bilhões.
Considerando-se
que a rolagem da dívida está custando ao Tesouro 40% ao ano, uma redução do
estoque em R$ 20 bilhões, representaria uma economia a curto prazo de R$ 8
bilhões. Isso equivale a aproximadamente 20 anos dos dividendos pagos ao
Tesouro pela Petrossauro na média do período 1995-1998 (a média anual foi de R$
401,7 milhões).
Se
aplicarmos o mesmo raciocínio à privatização de bancos estatais e empresas de eletricidade,
verificaremos que a solvência brasileira dificilmente será restaurada pela simples
reforma fiscal. Terá que ser complementada pela reforma patrimonial.
É
perigosa complacência a atitude governamental de que a reforma fiscal é urgente
e a reforma patrimonial postergável. É dessas complacências e meias medidas que
se compõe nossa lamentável, repetitiva e humilhante crise existencial."
Por Roberto Campos
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