O Brasil acompanhou a tragédia que – alguns anos atrás - assolou o
Estado do Pará: inúmeras pessoas utilizando-se de rituais satânicos, bruxaria e
magia negra, seviciaram e assassinaram crianças indefesas. Um episódio
terrível, dos mais covardes e abomináveis que a história recente registra.
No segundo semestre de 1993, Goiás também
viveu um episódio semelhante, quando seis pessoas realizaram um ritual satânico
com o sangue retirado da estudante Fernanda Militão, assassinada no dia 21 de
maio, em Guapó, por Vicente Natal do Nascimento e João Maria Rocha Silva.
A feitiçaria é uma manifestação de origem
religiosa e está presente de forma determinante em todas as culturas
primitivas. A ignorância e o desconhecimento sobre as pestes, as doenças e os
fenômenos da natureza, levaram o homem primitivo a elaborar um imaginário
misterioso, onde povoavam demônios e potestades capazes de tudo, inclusive
explicar o que a razão desconhecia.
Os hebreus incorporaram os demônios da
antiga civilização mesopotâmica e os legaram aos cristãos modernos, para quem o
diabo - Satã, Satanás ou Belzebu - e toda a sua corte seriam anjos rebelados
contra Javé e expulsos do paraíso.
Na idade média a Igreja Católica chegou a
criar um tribunal eclesiástico para julgar os que estigmatizava como hereges.
Em 1484 o papa Inocêncio VIII introduziu o suplício e a tortura para extrair
dos acusados de bruxaria a confissão que os redimiria. E três anos depois, em
1487, o dominicano Jakob Sprenger publicou Malleus maleficarum - O martelo das
feiticeiras -, que se constituiria no abecedário, na cartilha e manual que
conduziria a rotina de insanidades dos inquisitores – tudo em nome de Deus.
Uma das características deste tribunal de
inquisição eram os processos sumários. Mulheres, crianças e escravos eram
estimulados a dele participar como testemunhas de acusação, mas jamais de
defesa. A delação, sobretudo de parentes e amigos, ensejava para os acusados
benefícios de toda ordem, inclusive o perdão. Às execuções promovidas pelo
Santo Ofício em que as vítimas eram queimadas em fogueiras dispostas em praças
e logradouros públicos, denominavam-se autos-da-fé.
Em Lisboa, na torre do Tombo estão
registrados quase 40 mil processos deste tipo. Antônio José da Silva, o Judeu,
nascido no Rio de Janeiro no ano de 1705, e nome dos mais significativos na
dramaturgia de língua portuguesa, foi queimado no fogo da santa igreja católica
no ano de 1739, em Portugal.
Ao contrário destes casos recentes que tem
pontuado a realidade brasileira, grande parte dos processos do Santo Ofício se
prestavam à perseguição religiosa – no caso contra os judeus e muçulmanos – e,
sobretudo, à perseguição política.
A reação científica e filosófica contra
estas crenças supersticiosas se origina a partir do séc. XVII, se robustece com
o Iluminismo e o desenvolvimento da psiquiatria, também com a influência dos
racionalistas como Descartes, Voltaire e D`Alembert; e com as ideias que
acompanharam a Revolução Industrial.
Atualmente estas práticas remanescem
isoladamente e invariavelmente, de tempos em tempos, ocupam as páginas
policiais dos jornais, como a mostrar o quanto a modernidade mantém-se
vinculada à barbárie de nossos antepassados.
Desde sempre, estas práticas primitivas
tiveram como essência o exercício da influência e do poder, seja sobre o
Estado, seja sobre o próximo, ou seja ainda sobre os fenômenos da natureza.
Hoje, setores da intelectualidade criaram
um racionalismo funcional que regula a existência do Estado, e mantém sob
controle as válvulas de pressão para que as transformações ocorram na casca e a
substância não seja alterada.
Os fenômenos da natureza são – cada vez
mais – tratados pela mais fina tecnologia, com a utilização intensiva de
satélites, pesquisas efetuadas no espaço sideral, e estudos cosmológicos. Já as
relações de dominação sobre o outro, que no passado – de forma predominante –
passavam por pactos com o diabo, deitação de cartas, prestidigitação efetuadas
por feiticeiros e embusteiros de adivinhações e malefícios, são hoje
substituídas ora pela sutileza dos acordos sociais, ora pela mesquinhez, pela
ideologia do controle das massas, pela hipocrisia reluzente dos discursos
bombásticos, perfeitos na poética, mas desprovidos de conteúdo. E tudo
potencializado pela propaganda e pela onipresença da mass media.
Nas relações interpessoais diuturnamente
nos deparamos com esse tipo de pessoas. As que justificam o Estado mantenedor
de privilégios para os poucos iluminados. As que referendam as práticas
calcadas na dominação e opressão. As que entoam a cantilena de que os fins
justificam os meios. Na escola ou no trabalho lá estão elas, sempre bem
falantes, bem sucedidas na vida, com um rosário de vantagens pregressas, ou
providenciais “desvantagens” como: “já fui engraxate”; “já vendi picolés e
quitandas para sobreviver”, “tive uma infância pobre”, e coisas do gênero.
Circundam-nas um mar de mentiras e falsidades. A produção por elas obtida se
circunscreve ao superficial e volátil, ao periférico, a nada que guarde
semelhança com o estrutural, que sequer tangencia o que de fato importa. Neste
ambiente impera a intriga e o perjúrio. A fofoca e a versão tem mais sentido
que os fatos. As relações são ancoradas pelo que há de mais fugaz: a vaidade.
Neste contexto o outro só existe enquanto escada, trampolim, instrumento, ou
obstáculo a ser suprimido. Esta categoria de pessoas só são visíveis
integralmente, sem os invólucros, quando conquistam o poder. Basta
presenteá-las com uma porção, ainda que diminuta de poder, e ei-las, desnudas,
se mostrando por inteiro, sem as inúmeras máscaras; exalando o cheiro
nauseabundo da decomposição. Lobo em pele de cordeiro.
Para conquistar espaço social e poder,
alguns ainda acorrem à magia e à feitiçaria dos tempos da barbárie, distúrbios
que a civilização dos tempos modernos procura resolver através da psicanálise,
da psicopatologia e do conjunto das ciências médicas e sociais.
O universo em que se encerra a sociedade
tem uma amostragem no ambiente escolar, acadêmico e do serviço público. As
relações de dominação são reproduzidas em menor escala, mas a resultante não se
apresenta de menor intensidade. Como tornar harmônicas e produtivas as relações
na escola, na academia, nas organizações privadas e estatais se, as que se
verificam no universo social são pautadas pela violência e autoritarismo. Este
é um senhor desafio.
Na Educação, a relação educador-educando
se torna extremamente delicada, haja vista a função exercida pelo professor que
o coloca - no mínimo, numa posição destacada e privilegiada.
Já deveria estar longe o tempo do
professor senhor da vida e da morte, conhecedor de tudo e de todos, imperador
do saber e dos caminhos, olhando de soslaio e com desdém o conhecimento
incorporado pelo aluno. Deveria, mas não está. Grandes avanços foram
verificados, mas infelizmente estas situações ainda persistem.
Se o bom educador é aquele capaz de se
situar ao lado e não acima do educando, como ignorar que o saber do aluno se
constitua num dos insumos capazes de levar ambos a um patamar superior, espaço
onde deverão interagir todos os diferentes tipos de conhecimento: o produzido
pelas sucessivas e interpenetradas fases da vida – infantil, juvenil,
adolescente, adulto e senil; o elaborado no espaço comunitário, o construído
nas relações familiares, os obtidos na pesquisa empírica, científica, na lida
acadêmica, ... Importa perceber que tanto o conhecimento do professor quanto o
do aluno são importantes, na exata medida em que um será incapaz de desenvolver
sem a presença do outro; que ambos são re-elaborados a cada encontro. É deste
ciclo dinâmico, deste choque de saberes e vivências que se nutre o conhecimento
transformador, o que substancia um futuro mais qualificado. E não vai aqui nada
que se assemelhe ao democratismo, à libertinagem: o professor não pode abrir
mão de sua autoridade, mas no exato limite do respeito para com o educando.
Com as devidas adaptações esta realidade
se reproduz na instituição pública, conformando a relação dos servidores
públicos entre si e destes com os demandantes dos serviços, a comunidade.
No Brasil, os demônios mais
representativos em cultos de origem africana são os Exus e entre os de origem
indígena, o Anhangá e o Jurupari. Mas na educação e na gestão pública existem
demônios infinitamente mais devastadores: é o professor e o gestor público
democratistas, aquele que tece loas à liberdade mas tão somente para escamotear
sua verve autoritária; aquele que se faz de bonzinho e popular, mas que se
desmascara ante um naco qualquer do poder; aquele que se apropria do patrimônio
público... Portanto nos lambuzemos da mais absoluta liberdade democrática, do
permanente combate aos dogmas e paradigmas, do mais absoluto amor ao outro, e
estaremos varrendo da face da terra estes vampiros de nossos sonhos e
esperanças.
Antônio Carlos dos Santos, criador da
metodologia Quasar K+ de Planejamento Estratégico e da tecnologia de produção
de teatro popular de bonecos Mané Beiçudo.