A palavra democracia já se popularizou entre nós. Tornou-se parte
do vocabulário popular incorporando-se ao cotidiano das pessoas. Se por um lado
esta situação representa um avanço expressivo, dado que qualquer que seja o
significado adotado, falar em democracia sempre será oxigenar o ambiente
político; por outro, pode encerrar certa hipocrisia, um invólucro bem produzido
para escamotear formas mais sutis de opressão e dominação. Quem não se lembra
que a parte da Alemanha assumidamente bucocrático-comunista do período muro de Berlim era pomposamente denominada
“democrática”?
De origem grega, a palavra democracia, na
realidade, encerra uma multiplicidade de significados ditados, sobretudo, pela
teoria política, ou mais apropriadamente pelas idiossincrasias circunstanciais.
Originalmente significa uma forma de governo caracterizada pelos cidadãos
exercerem diretamente o poder de decisão, quando prevalece a maioria.
Mas mesmo a maioria grega era bastante
relativa, pois dela se excluíam as mulheres e a esmagadora maioria da população
escrava.
O crescimento das cidades e a explosão demográfica
ensejaram a modernização do estado e as necessárias adaptações foram tomando
forma, de sorte que da democracia direta passamos para a representativa, quando
o exercício da decisão se processa através de representantes preliminarmente
eleitos.
No Brasil, a história democrática é
caracterizada por idas e vindas - infelizmente mais vindas que idas. Momentos
de expansão – vezes acelerados - revezando com outros letárgicos e sonolentos.
Longos períodos de obscurantismo e opressão cedendo uma fração do tempo aos curtos
e efêmeros períodos de liberdades.
Desde a proclamação da república já
tivemos sete cartas magnas. Sete constituições, o que registra nossa extrema
vulnerabilidade e o quanto nosso ordenamento legal é volátil.
Os limites da constituição imperial de
1824 estavam mais que evidentes quando estabeleceram inamovíveis vinculações do
exercício dos direitos políticos ao nível de renda dos cidadãos, uma forma nada
sutil de excluir a maioria da população do processo de participação
institucional. Como que para redimir a tendência ultra elitista, a constituição
de 1891 se volta para outra direção, garantindo alguns direitos, assegurando a
representação das minorias e instituindo o sufrágio universal masculino. Mas
manteve os analfabetos, mendigos, soldados e religiosos ao largo desta
importante conquista política e social.
Decorre daqui, portanto, dois problemas
que de certa forma perduram até a atualidade.
O primeiro é que o voto aberto, nas
condições em que foi estabelecido, permitiu a manipulação eleitoral, o voto de
cabresto e o coronelismo, que de certa forma – assumindo formatos mais
sofisticados – ainda dominam o panorama político em vários rincões do país.
E o segundo é que a falta de justiça
eleitoral independente depositou nas mãos do governo o reconhecimento dos
deputados eleitos.
No ano de 1934 surge uma nova
constituição, inspirada na alemã, e que incorpora a Justiça do Trabalho e
outras conquistas trabalhistas.
Se sete foram as constituições, as intervenções
militares foram nove, testemunhando nossa cultura autoritária e a onipresença
dos quartéis.
Quando lançamos o olhar sobre o conjunto
dos mandatários da nação, percebemos que dos cerca de trinta presidentes
brasileiros, dez não completaram o mandato. Destes dez, quatro foram depostos
por golpes, três morreram, e um sofreu impeachment.
Do total dos presidentes brasileiros é
curioso observar que apenas quinze foram escolhidos pelo voto direto, portanto
menos da metade.
Mas a história política brasileira mostra
um outro viés: a utilização do eleitorado como massa de manobra dos grupos
dirigentes. Esta situação chegou a tal grau que, durante a república velha,
apenas 3% dos que poderiam votar eram chamados a colocar o voto na urna.
Em contrapartida, mais recentemente foi a
opinião pública que, mobilizada, possibilitou o impedimento do ex-presidente
Fernando Collor.
Já tivemos presidente que imaginava ser a
gestão pública um ramo da engenharia civil. Era o caso de Washington Luiz que
chegou a afirmar que “governar é construir estradas”.
Se Washington Luiz foi o benemérito
originário das grandes empreiteiras, não ficou atrás quando o assunto era a
exclusão social. Conseguiu atribuir às forças policiais uma função muito maior
que a de assegurar a elucidação de crimes e a prisão de delinquentes. Foi
Washington Luiz quem perenizou a expressão “a questão social é caso de
polícia”.
Mas nossa sina autoritária tem raízes mais
profundas. Nosso primeiro presidente, o marechal Deodoro da Fonseca
(1889-1891), determinou o fechamento do congresso, decretando a seguir o estado
de sítio.
Floriano Peixoto (1891-1894) arquitetou
durante todo o tempo contra as liberdades individuais, sobretudo a de opinião e
foi o primeiro a fazer prisões políticas.
Arthur Bernardes (1922-1926) conseguiu
aprimorar os desvios despóticos de Floriano Peixoto, tornando-se o primeiro a
construir uma prisão especial para presos políticos.
E daí segue um conjunto de acontecimentos
de cunho autoritário, incorporados às nossas tradições e imaginário;
registrando o quanto a democracia tem sido até o momento uma cantilena
principalmente para os excluídos.
Mesmo nos dias de hoje, quando vivemos uma
experiência democrática jamais experimentada, salta aos olhos o que parece uma
inesgotável capacidade das elites políticas de promover exclusão social. A
verdade é que, se avançamos na democratização da vida política, no campo
econômico o que se fez foi muito pouco, haja vista o país ostentar uma das mais
perversas concentrações de renda do planeta.
Este passado histórico afeta todos nós e,
de uma maneira especial, os educadores. É que cabe a esta categoria especial de
pessoas uma atividade por demais nobre: a de reproduzir o conhecimento,
reciclá-lo, torná-lo assimilável para os aprendizes; desvendar os mistérios que
emolduram as artes e o saber, e torná-los disponíveis e acessíveis a todos. E
como conviver neste ambiente ignorando esta herança autoritária já incorporada
– ainda que inconsciente - ao nosso modo de ser, pensar e agir? Este é o
desafio do verdadeiro educador, transformar-se em um agente em permanente
renovação, transformador de si e das coisas, um homem capaz de reelaborar
permanentemente o mundo, ao mesmo tempo em que reelabora a si próprio. Um
agente que enxergue o outro, e não só seus alunos, como literais parceiros
neste processo dinâmico e ininterrupto de resgate da ética e da solidariedade.
Um cidadão que não entenda a sala de aula como seu universo, e sim que perceba
o universo como sua sala de aula.
É deste professor que nossos alunos necessitam.
Nada de falsos libertários, loquazes ventríloquos, papagaios de pirata,
cintilantes, onipresentes; sempre com as respostas prontas e definitivas na
ponta da língua, mas hipócritas e pobres de conteúdo. Precisamos do professor
que consiga superar e romper a redoma autoritária em que a sociedade está
envolta. Do professor que ao invés de se colocar acima, se coloque ao lado do
aluno, que partilhe com ele as dúvidas e que aceite o desafio de comungar a
busca pela melhor das alternativas. Sim ao professor que - ao contrário da
prepotência e arrogância da academia, dê guarida à humildade, à troca, à
generosidade.
Se o que desejamos é edificar uma
sociedade que partilhe os valores e as condições que nos transformem todos em
cidadãos, então teremos que procurar por novos educadores e gestores públicos,
por um agente que entenda a educação e a gestão como uma troca entre iguais com
diferentes tipos de conhecimento. E que todo conhecimento incorpora, no seu
devido contexto, importância individual e social.
Evidente que a abordagem do professor
aqui adotada não se restringe ao profissional stricto sensu, vez que cada um de
nós, diuturnamente, nos locais de estudo, trabalho, entretenimento e moradia
somos a um só tempo professores e aprendizes.
Antônio Carlos dos Santos - criador da
metodologia Quasar K+ de Planejamento Estratégico e da tecnologia de produção
de teatro popular de bonecos Mané Beiçudo.