Há que
diga que o Brasil comporta, a um só tempo, dois países. Em um deles, poucos tem
tudo – tal qual a Dinamarca; enquanto no outro – como uma capitania de Zimbábue,
muitos têm quase nada.
É uma
figura que nada deve à realidade. O país, historicamente, tem se caracterizado
pelas abissais desigualdades. E forçoso é reconhecer que o país comporta não
dois, mas inúmeros países em seu interior.
Entre as desigualdades
mais expressivas, salta aos olhos as existentes entre os municípios e as que se
estabeleceram entre as regiões. Enquanto as regiões Sul e Sudeste seguem,
resolutas, desbravando o século XXI, outros municípios e regiões mantêm-se
aprisionados ao século passado, prisioneiros do atraso e do subdesenvolvimento.
O Índice Firjan de Desenvolvimento Municipal (IFDM) enfatiza, no último
levantamento, que as diferenças regionais no Brasil continuam aviltantes. Conforme
o estudo, os 500 municípios com menores IFDMs estavam, em 2011, 13 anos atrás
dos 500 na liderança do ranking.
Médica e professora da UFRJ, Ligia Bahia acredita que, para diminuir a
disparidade regional, é necessário que haja prioridade orçamentária e de
recursos humanos:
— Sem planejamento, sem articulação entre o social e o crescimento
econômico, essa desigualdade não acaba. Não adianta só repassar verba, não
pode ficar mais achando que política social é melhorar renda e só. Se melhora
a renda e não melhora, por exemplo, a qualidade da Saúde oferecida, em
algumas cidades a pessoa vai continuar morrendo sem diagnóstico. Diminuir a
disparidade é dar também mais chance de sobrevivência, de uma vida melhor.
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Temos um
longo caminho a percorrer até que o país consiga estabelecer um mínimo de
equilíbrio entre os municípios e, também, um razoável equilíbrio entre as
regiões.
O Estado
nacional tem que assegurar a todo cidadão – independentemente de onde nasça ou
resida – existência condigna: condições adequadas de saúde e hospitais
decentes; universalização do ensino de qualidade; melhores condições de emprego
e renda; um eficaz sistema de transporte público; infraestrutura física consonante
com as exigências do desenvolvimento; serviços públicos de qualidade; enfim,
condições para que a cidadania se afirme para além da letra petrificada da lei.
Em sua
busca por afirmação, os municípios têm uma longa história de êxitos e
fracassos.
A
instituição do município no Brasil, legado do processo de colonização
português, remonta ao século XVI.
Naquele
período, a configuração do poder assumia uma estruturação bastante diferenciada
da atual. Os poderes locais - executivo e legislativo, eram centralizados e
exercidos por uma única instituição, a Câmara Municipal. Foi a primeira
experimentação de instituição local.
À medida
que foi passando o tempo, novas conquistas se efetivaram e, já na Constituição
de 1824 - complementada com o Ato de 1828, as cidades e vilas adquiriram o
direito de eleger uma Câmara com responsabilidade de governar o município e administrar
a economia local.
O fim do
Império e o advento da República trouxeram novos ares, oxigenou a vida política
do país, e agregou à história da municipalidade um princípio vital: a autonomia
municipal.
A
Constituição de 1891 atribuiu aos Estados a responsabilidade de proceder a
organização de suas unidades municipais, consagrando a autonomia, e estendendo
seus limites aos marcos de "... tudo
que respeite seu peculiar interesse."
Na década
de 30, ocorreu uma inversão de tendências. Grandes transformações se
processavam no seio da sociedade, e a centralização passou a ser o princípio
cristalizado na administração pública. Deste contexto resultou a supressão da
autonomia dos estados e municípios, só não verificada no breve interregno em
que vigorou a Constituição de 1934.
Após a
segunda Guerra Mundial, a derrota das forças nazifascistas reorientou a
paisagem política no mundo. O Brasil se redemocratiza e resgata, em sua
constituição, o pilar estrutural: a autonomia municipal.
A
Constituição de 1946 chega a limitar as possibilidades de intervenção dos
estados nos municípios, só a permitindo no caso de inépcia financeira. Em todos
os demais casos, à Câmara Municipal cabia exercer a fiscalização sobre os atos
do executivo.
Em 1964,
nova reviravolta restabelece os princípios autoritários de gestão, com destaque
para a concentração e a centralização administrativa. A autonomia municipal é
reduzida a farrapos. Uma reforma tributária é concebida para fragilizar as
municipalidades, mantendo-as dependentes de fundos transferidos; e os casos em
que a intervenção municipal é admitida se multiplicam. Na Emenda Constitucional
de 1969, as possibilidades de intervenção dobram, passando de três para seis. Mas
o estado autoritário ignora até mesmo a legislação arbitrária por ele engendrada,
e costumeiramente decreta intervenção no município ignorando dos limites
previstos na constituição.
Neste período
em que o estado de direito foi manifestamente aviltado, o município se viu desfigurado;
as câmaras de vereadores humilhadas com recessos compulsórios; mandatos
eletivos conspurcados com a cassação; direitos políticos de prefeitos,
vereadores, lideranças institucionais e populares simplesmente suprimidos.
Para
manter amordaçada a população todo o processo de comunicação social recebia censura
prévia. Enquanto as universidades e centros de estudos eram controlados; as
capitais dos estados, as "estâncias hidrominerais" e as "áreas
de interesse da segurança nacional" eram impedidas de exercer a conquista
obtida na década de 30, o sufrágio universal: seus prefeitos não eram eleitos e
sim nomeados.
Ao contrário
do que ocorre nas ditaduras, nas democracias a tendência é pelo fortalecimento
dos governos locais. Seguramente por se constituírem no poder mais próximo e acessível,
plenamente ao alcance do cidadão comum. É no município que as pessoas vivem,
trabalham, se divertem, estudam e constroem a prosperidade das atuais e futuras
gerações.
Com o resgate
do estado de direito, a constituição de 1988 tornou a resgatar as prerrogativas
antes suprimidas, acrescentando outras, de grande importância para o
desenvolvimento sustentável e para as comunidades locais.
O
município pulsa, dá movimento à vida comunitária, mais uma razão para torná-lo referencia
e absoluta prioridade no processo de planejamento público.
Natural,
portanto, que as comunidades dos pequenos povoados e distritos almejem a
transformação de seus espaços em municípios na perspectiva de acessar o
desenvolvimento, gozar seus benefícios; correto? Não!, não é correto! Mas, no
Brasil, é como se existisse somente este modelo, como se a única alternativa
para alcançar serviços públicos minimamente decentes fosse instituir o município.
Ledo engano. É aqui que, matreiramente, os políticos oportunistas ganham
destaque surfando nas ondas artificiais criadas.
Quando se
trata dos entes federados e de suas dimensões e burocracias, a solução será –
muito raramente – ampliar. Quase sempre, o correto será enxugar, cortar,
otimizar; fazer mais e melhor com menos, mesmo porque, trata-se de lidar com o
axioma de que os recursos disponíveis serão sempre limitados.
Atentemos
para o que está acontecendo, neste instante, na França. O país está promovendo
uma verdadeira revolução administrativa em seus espaços e instâncias de
representação regionais. E isto numa fração do tempo: apenas dois meses. Os
franceses estão objetivando, segundo o presidente François Hollande, alcançar
uma gestão pública mais ágil e menos custosa; exatamente a mesma argumentação
que a intelligentsia nacional está adotando
para justificar a nova leva de municípios que já se encontra no forno. Não é
hilário o paradoxo?
A França
compromete, hoje, 55% do seu PIB entre a Administração central, as 36.700
comunas ou municípios, as 13.400 associações de municípios, os 96 departamentos
ou províncias - com seus respectivos conselhos gerais ou assembleias (4.058
cargos eleitos com salário) - e as 22 regiões com seus conselhos regionais
(1.757 cargos).
Com a
reforma e as novas fronteiras internas o país de Rodin, Taunay e Debret obterá uma economia de algo entre 36,5
bilhões de reais a 76 bilhões de reais nos próximos três anos.
A França
não está reinventando a roda. Diversos países europeus têm optado por
estruturas municipais/regionais mais enxutas e eficazes, abandonando os modelos
sacramentados na América Latina onde estruturas e burocracias gigantescas dão
azo à corrupção e à baixa qualidade dos serviços prestados.
A Grécia,
por exemplo, chegou a contar com 54 províncias. Hoje, se recupera da enorme crise
que ainda assola o país com 13. A Dinamarca reduziu de 14 para 5 regiões, e a
Suécia tomou a decisão de reduzir para menos da metade suas 21 regiões.
Infelizmente, no Brasil, temos navegado
na contramão.
O governo vetou, há pouco tempo, o
projeto de lei PLS 98/2002 alegando, com justa razão, que o projeto estimularia
a criação de pequenos municípios , fragmentando ainda mais
a divisão dos recursos do Fundo de Participação dos Municípios e,
consequentemente, fragilizando a boa gestão municipal. Apesar do veto não ter
sido, ainda, votado pelo Congresso, com a proximidade das eleições, os
senadores aprovaram, numa maratona de votações, o projeto de lei complementar PLS 104/2014 -
Complementar. As previsões mais serenas estimam
que, a curtíssimo prazo, teremos a criação de, no mínimo, 200 novos municípios.
Portanto, mais prefeitos, mais vereadores, mais servidores públicos, mais
gastos com custeio da máquina pública, mais orçamento para as despesas
correntes e, consequentemente, menos recursos globais para investimento.
Tudo está sendo processado sob uma
áurea de atendimento das necessidades cientificamente identificadas e
tecnicamente comprovadas – afinal, o meio publicitário já comprovou: pesquisas
e estudos de viabilidade existem em profusão para atender os interesses dos que
se dispõem a pagar. Está lá no PLS.
O artigo 2º estabelece como uma das condições para a criação, a incorporação, a
fusão e o desmembramento de Municípios, a realização de Estudos de Viabilidade
Municipal (EVM). A preocupação em criar uma carapaça pelo menos aparentemente
técnica e científica é tamanha que o texto repete 28 vezes o termo Estudos de
Viabilidade Municipal ou sua sigla, EVM.
Vejam se
o artigo 1º do PLS não é uma candura.
“(...)
Art. 1º Esta Lei Complementar dispõe sobre a criação, a
incorporação, a fusão e o desmembramento de Municípios, nos termos do § 4º do
art. 18 da Constituição Federal e dá
outras providências.
(...)
Sobre a criação de municípios, não há o que
dizer. As porteiras foram escancaradas como, convenientemente, convém nos períodos
eleitorais.
Já quanto
à incorporação e a fusão de municípios a que alude o
artigo, está mais para uma patacoada, uma piada de salão, um pastelão que não
passaria no controle de qualidade de Chaves, Mussum e Zacarias. Algum dia
veremos ocorrer no país essas glamorosas figuras da incorporação e da fusão
de municípios? Quando cortar gastos, reduzir despesas, combater a sobreposição
de ações, projetos e instituições não for entendido como sandice, teremos
atingido uma administração pública bem mais próxima da eficácia. No Brasil, o
aparelho de estado se agiganta diuturnamente. É como se tomado por um cancro
fatal que consume as forças e energias da nação, alimentando uma enorme burocracia,
forjada para criar dificuldades e lucrar com a venda de facilidades. Resultado:
corrupção endêmica. Observe, caro leitor, que na incorporação ocorre a completa integração de um Município a outro
preexistente, perdendo o Município integrado sua personalidade jurídica,
prevalecendo a do Município incorporador; e na fusão, a completa integração de 2 (dois) ou mais Municípios
preexistentes, originando um novo Município com personalidade jurídica própria.
É o que dispõe o projeto de lei.
O PLS
ainda segue para sanção da presidente da República, mas, ano eleitoral, há quem
duvide que será editada com pompa e circunstância? A desculpa para o imbróglio já
está na ponta da língua. O repertório de pretensas justificativas é extenso:
- Agora
as coisas são diferentes, as regras tronaram-se mais rígidas...
- O texto
anterior, vetado pela presidente, era frouxo...
- Os
povos dos rincões mais distantes e abandonados agora terão desenvolvimento...
E assim
segue nossa sina: projetamos cavalos árabes puros-sangues para vermos emergir,
ao final de linha de produção, não mais que uma cáfila de animais pernetas,
doentes e desdentados.
Antônio Carlos dos Santos, criador da metodologia de planejamento estratégico Quasar K+ e da tecnologia de produção de teatro popular Mané Beiçudo.