Por Fernando
B. Meneguin e Pedro Fernando Nery
A desaposentadoria (ou desaposentação)
é o cancelamento de uma aposentadoria que está vigendo para pleitear uma nova.
Com esse cancelamento, consideram-se novamente todos os anos de trabalho do
passado, acrescidos às contribuições da manutenção da condição laboral após a
primeira aposentadoria. O objetivo disso é conseguir um benefício melhor. A
desaposentadoria é pleiteada por aqueles que se aposentam mas não param de
trabalhar, recebendo simultaneamente o benefício de aposentado e a renda do
trabalho, sobre a qual incide a contribuição previdenciária.
O Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) não reconhece
o direito dos aposentados em se desaposentar, pois considera impassível a
renúncia do benefício. Além disso, argumenta que se a sistemática da
desaposentadoria virar regra, haverá um enorme impacto prejudicial às contas da
previdência.
O Poder Judiciário tem posicionamento
diferente. O Superior Tribunal de Justiça (STJ) já confirmou, no ano passado,
em julgamento de recurso repetitivo1, que o aposentado tem o direito
de renunciar ao benefício para requerer nova aposentadoria em condição mais
vantajosa, e que para isso ele não precisa devolver o dinheiro que recebeu da
Previdência. Isso significa que a renúncia à aposentadoria, para fins de
concessão de novo benefício, seja no mesmo regime ou em regime diverso, não
implica o ressarcimento dos valores recebidos.
Para o STJ, os benefícios
previdenciários são direitos patrimoniais disponíveis e, portanto, suscetíveis
de desistência pelos seus titulares, dispensando-se a devolução dos valores
recebidos da aposentadoria a que o segurado deseja renunciar para a concessão
de novo e posterior benefício. A matéria deve entrar em breve na pauta do
Supremo Tribunal Federal (STF), no julgamento do Recurso Extraordinário nº
661.256, que ganhou repercussão geral. Em caso semelhante (Recurso
Extraordinário nº 381.367), o ministro relator Marco Aurélio iniciou o
julgamento votando a favor da desaposentadoria. No Legislativo, tramitam vários
projetos de lei instituindo esse direito ou concedendo vantagens semelhantes2.
Cabe considerar, no presente tema, não
apenas a questão jurídica, mas também todo o impacto econômico na sociedade. Ao
se validar o instituto da desaposentadoria, contraria-se todo o esforço recente
de se melhorar as contas da previdência.
É importante fazer um breve histórico
sobre as recentes alterações previdenciárias. O Governo, na época da aprovação
da Emenda Constitucional nº 20, de 1998, não conseguiu incluir o limite de
idade para aposentadorias na esfera do setor privado; no entanto, a mesma Emenda
nº 20 abriu caminho para substancial inovação na metodologia de cálculo do
salário-de-benefício dos segurados do Regime Geral de Previdência Social –
RGPS, operado pelo INSS. Calcado no novo dispositivo constitucional (art. 201),
que explicita o caráter contributivo da previdência social e requer equilíbrio
atuarial e financeiro do sistema, bem como na “desconstitucionalização” da
regra de cálculo do valor dos benefícios, o Governo implantou o chamado “fator
previdenciário”.
Tratou-se de iniciativa do Poder
Executivo que, pressionado pela imprescindível adoção de medidas que
permitissem o controle e contenção da tendência ascendente dos gastos
previdenciários, enviou ao Congresso proposta de legislação ordinária que
estabelecia, dentre outros aspectos, o chamado “fator previdenciário” no
cálculo das aposentadorias. Tal projeto de lei, tendo tramitado em regime de
urgência, foi aprovado, com pequenas modificações, em novembro de 1999,
transformando-se na Lei nº 9.876, de 26 de novembro de 1999.
O fator previdenciário consiste na
inserção, na fórmula de cálculo do salário-de-benefício, de um multiplicador
que inclui a expectativa de sobrevida, a idade e o tempo de contribuição do
segurado, ou seja, critérios atuariais que aumentam a correlação entre
contribuição e benefício. Ademais, ao invés de considerar apenas os últimos
três anos de contribuição como base para a fixação do valor da aposentadoria,
como antes estabelecido na Constituição, o novo cálculo considera toda a vida
laboral do trabalhador (a partir de julho de 1994).
Com o novo método, cada segurado passou
a ter direito a receber um benefício calculado de acordo com a estimativa do
montante de contribuições realizadas, capitalizadas por uma taxa determinada
pelo tempo de contribuição e idade do segurado, bem como pela expectativa de
duração do benefício.
É fundamental entender que a nova regra
representa passo significativo em direção à construção de um sistema
previdenciário equilibrado. Além de embutir em seu cálculo um fator atuarial –
a expectativa de sobrevida por faixa etária – tende a equilibrar o fluxo de
caixa do sistema previdenciário no curto e médio prazos. Isso porque o segurado
que sair mais cedo, provocando um desembolso antecipado, receberá, em
contrapartida, uma aposentadoria de menor valor.
Tal critério é justo. É razoável que
aquele que opte por se aposentar por tempo de contribuição (35 anos para homens
e 30 para mulheres) em idade precoce faça jus a benefício inferior a de outro
que prefira se aposentar com idade mais elevada. Esse último, além de ter
contribuído por maior período, deverá receber o benefício por menos tempo,
sendo, justo, pois, que aufira uma renda mensal mais elevada que o primeiro.
Percebe-se, assim, que o fator
previdenciário, embora não elimine o déficit existente, nem altere direitos
adquiridos de aposentados, permite maior correlação entre
salário-de-contribuição e salário-de-benefício para as novas aposentadorias.
Ainda, representa grande avanço no sistema de repartição simples, profundamente
afetado por mudanças demográficas. Com o aumento da expectativa de sobrevida da
população, por exemplo, é necessário que limites de idade mínima sejam
periodicamente repactuados com a sociedade. No entanto, na medida em que esta
variável está presente no próprio cálculo do salário de benefício, os ajustes
necessários serão automaticamente internalizados de modo que o sistema se
mantenha equilibrado.
O instituto da desaposentadoria acaba
com os benefícios do fator previdenciário para a saúde das contas
previdenciárias. Com as regras criadas pelo Poder Judiciário, os beneficiários
do INSS têm incentivo a se aposentarem cedo e continuar trabalhando, pois
acumularão a renda da aposentadoria com o salário do trabalho não interrompido.
Depois de anos recebendo a aposentadoria, quando conseguirem um fator
previdenciário favorável, simplesmente pedem o cancelamento da aposentadoria e
solicitam novo recálculo do benefício. O Ministério da Previdência Social (MPS)
estimou em 2011 impacto de R$ 69 bilhões nas contas públicas a longo prazo caso
a desaposentadoria fosse reconhecida pelo Supremo3.
Ora, mas não há cálculo atuarial que
consiga equilibrar essa situação, pois, no período entre a primeira
aposentadoria e o novo recálculo, o beneficiário já tinha gerado um ônus para o
Estado, pois já estava recebendo uma renda pelo INSS. Para consolidar a
desaposentação, o mais justo seria então o beneficiário devolver tudo o que
recebeu a título de aposentadoria nesse intervalo.
Ademais, a desaposentadoria constitui
grande injustiça com os trabalhadores e aposentados que, quando satisfizeram os
critérios para pedir a aposentadoria por tempo de contribuição, optaram por não
pleitear o benefício, trabalhando sem acumular a renda do trabalho com a
aposentadoria. Esses trabalhadores se planejaram de acordo com a lógica do
fator previdenciário, esperando anos para poder receber uma aposentadoria com
valor maior. Naturalmente, esses trabalhadores e aposentados se sentem lesados
com a possibilidade da desaposentadoria, já que receberiam benefícios iguais ao
daqueles que se aposentaram muito antes, sem, no entanto, terem recebido a
aposentadoria durante todos os anos nesse intervalo.
Assim, a discussão sobre a
desaposentação remete ao grave problema das aposentadorias precoces no Brasil,
decorrentes da possibilidade de aposentadoria por tempo de contribuição – que
encontra paralelo em pouquíssimos outros países – e da ausência de idade mínima
para quem se aposenta pelo INSS, problema que o fator previdenciário, embora
não seja o ideal, conseguiu “remendar”. A idade mínima para a aposentadoria não
é a regra apenas nos países ricos – como nos escandinavos em que chega aos 67
anos -, mas também em países emergentes, mais parecidos com o Brasil. México,
Colômbia, Argentina, Chile, Peru e até El Salvador possuem idade mínima para
aposentadoria de 65 anos4. A título de ilustração, a idade média de
aposentadoria por tempo de contribuição das mulheres brasileiras no meio urbano
é de apenas 52 anos5.
O fator previdenciário atenua essa
situação, mas além de não resolver o problema, é mal compreendido pelos
segurados, muitos dos quais pedem a aposentadoria por tempo de contribuição
cedo. Sentem-se, porém, vitimados pelo “desconto” do fator, o que dá ensejo
posteriormente às ações de desaposentadoria para corrigir a suposta injustiça.
Dessa forma, a má compreensão sobre o
funcionamento do fator previdenciário faz com que esses aposentados
genuinamente creiam que o INSS lhes deve valores, ou que os valores das
contribuições feitas depois da “primeira” aposentadoria deveriam ser devolvidos.
Logo, não se percebe que a relação entre o tempo de contribuição e o tempo de
usufruto do benefício para os segurados do INSS é muito diferente da comparação
internacional e que o regime de custeio escolhido para o INSS na Constituição
não é o de capitalização – como o da previdência privada, em que o valor das
contribuições é revertido em benefício – e sim o de repartição, em que o
sistema financia os inativos com as contribuições daqueles que estão em
atividade.
Merecem ser destacadas, ainda, as
falhas em um argumento comumente usado a favor da desaposentadoria: a de que
este direito existe para os servidores públicos (Regime Próprio de Previdência
Social – RPPS) por meio do instituto conhecido como “reversão”. A reversão é
muito diferente da desaposentadoria, já que o servidor não recebe ao mesmo
tempo seu salário e a aposentadoria, deixando meramente de ser inativo para
voltar a ser ativo, no exato mesmo cargo que ocupava antes. Ressalta-se ainda
que a reversão está prevista em lei (não foi criação de tribunais), só pode
ocorrer de acordo com o interesse da Administração e segundo outros critérios
da Lei nº 8.112, de 1990, e que existe idade mínima para aposentadoria no RPPS
(65 anos para homens e 60 para mulheres, sem fator previdenciário). Obviamente,
isso não implica que os aposentados do RPGS estejam em situação mais
confortável que os do RPPS, mas todas as características citadas tornam os
institutos da reversão e da desaposentadoria muito diferentes.
O gráfico a seguir, produzido na Consultoria
Legislativa do Senado, mostra a evolução, em termos reais, das principais
séries de despesa e receitas públicas. Nota-se que a série que mais cresceu foi
a que representa os gastos com o Regime Geral de Previdência Social. Essa foi a
única série que superou o crescimento da Receita da União, mostrando como o
Regime Geral é uma bomba ainda não controlada.
Enquanto em 2010, segundo o IBGE, havia
16 idosos com mais de 60 anos para cada grupo 100 brasileiros entre 15 e 19
anos, as projeções mais atualizadas indicam que essa relação aumentará, em
menos de três décadas, para 52 a cada 1006. Levando em conta que o
próprio Ministério da Previdência Social projetou um déficit do Regime Geral já
da ordem R$ 50 bilhões em 2014, só é possível concluir que a situação da
previdência ficará muito grave nos próximos anos, e institutos como a
desaposentadoria reforçam esse quadro. Novamente segundo o MPS, mais de 700 mil
segurados teriam hoje direito ao aumento de seus benefícios, contingente maior
do que a população inteira de várias capitais do país.
O que se lamenta é uma falta de
consciência da restrição orçamentária intertemporal na economia. A
irresponsabilidade fiscal de hoje certamente causará problema para as gerações
futuras do Brasil.
1 Recurso Especial nº 1.334.488.
2 Apenas no Senado tramitam os projetos de lei nos 464, de 2003; 214, de 2007; 56, de 2009; 91 de 2010; e 188, de 2011.
3 Constanzi (2011)
4 Cechin e Cechin (2007).
5 Giambiagi e Schwartsman (2014).
6 Giambiagi e Schwartsman (2014).
2 Apenas no Senado tramitam os projetos de lei nos 464, de 2003; 214, de 2007; 56, de 2009; 91 de 2010; e 188, de 2011.
3 Constanzi (2011)
4 Cechin e Cechin (2007).
5 Giambiagi e Schwartsman (2014).
6 Giambiagi e Schwartsman (2014).
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Referências:
CECHIN, J.; CECHIN. A.
“Desequilíbrios: causas e soluções”. In: Tafner, P. e Giambiagi, F. (org.). Previdência
no Brasil – debates, dilemmas e escolhas. Ipea, 2007.
CONSTANZI, M. N. “Evolução e Situação
Atual das Aposentadorias por Tempo de Contribuição”. Informe da Previdência
Social, vol. 23, nº 8. Ministério da Previdência Social, 2011.
GIAMBIAGI, F.; SCHWARTSMAN, A. Complacência. Rio de Janeiro:
Elsevier, 2014.