Por Marcos
Mendes
Sempre que uma crise política ou econômica se
instala no país – como, por exemplo, as
manifestações populares de julho de 2013 –
volta ao debate o argumento de que é preciso fazer uma “reforma
política”. Tal reforma, chega a ser colocada por alguns analistas como sendo
mais importante que as demais (previdenciária, tributária, orçamentária,
trabalhista, etc.). Já foi qualificada até como a “mãe de todas as reformas”1.
Em geral o argumento é de que o sistema político
prejudica a governabilidade, estimula a corrupção e o agigantamento do Estado.
Ao mesmo tempo, não colabora para que se instale uma administração moderna,
focada no mérito e nos resultados obtidos, nem tampouco viabiliza a formação de
maiorias necessárias para aprovar as demais reformas.
Este texto pretende argumentar que um governo
decidido a dar prioridade à reforma política acabaria por conduzir sua
administração para um impasse, sendo incapaz de fazer tanto esta reforma quanto
as demais.
1 – A “reforma política” é, na verdade, um conjunto de várias
reformas: não seria viável tratar todas de uma vez.
Em primeiro lugar, é preciso dizer que não existe
“a” reforma política. O que há é uma diversidade de diagnósticos acerca de
quais seriam os mais importantes problemas do sistema político e, portanto, um
grande rol de propostas de reforma. Por exemplo, aqueles que acreditam que o
problema central está na baixa disciplina partidária e na dificuldade de o
governo eleito formar maioria no Congresso, propugnam a mudança do atual
sistema de eleições proporcionais com lista aberta, usada para a Câmara dos
Deputados e legislativos estaduais e municipais, por outros sistemas como o
voto distrital ou o voto proporcional em lista fechada. Outros, preocupados com
comportamento oportunista de pequenos partidos pouco representativos, desejam
que haja uma cláusula de barreira que impeça partidos pouco votados de ter
representação na Câmara. Também se preocupam com as distorções geradas pelas
coligações em eleições proporcionais ou a regra de escolha de suplentes de
senador.
Há, ainda, uma longa lista de temas, como o voto
facultativo, a duração das campanhas, as fontes de financiamento (público ou
privado), a possibilidade de reeleição, a duração dos mandatos, a vedação a
candidatos condenados (ficha limpa), etc.
Percebe-se, portanto, que não existe um único
problema a ser resolvido. Há uma diversidade de problemas. Tratá-los todos de
uma vez, como uma “ampla reforma política” é inviável.
Tal inviabilidade decorre, em primeiro lugar, das
próprias limitações do sistema político. Está claro, após quase trinta anos de
democracia, que medidas que contrariam interesses organizados têm viabilidade
de aprovação apenas no primeiro ano de mandato presidencial, quando o chefe do
Executivo tem o suporte da grande quantidade de votos recentemente obtida e
pode apelar para o desejo de mudança e progresso do eleitorado. Com o passar do
tempo os grupos de interesse se organizam e a mobilização cívica do período
eleitoral se esvai. Por isso é necessário aprovar reformas que estejam baseadas
em claro diagnóstico do problema a ser resolvido e da eficácia das medidas a
serem tomadas.
2 – Para cada um dos vários problemas há múltiplas soluções
propostas e nenhum consenso sobre qual seria a melhor delas
Além de serem muitos os problemas do sistema
político, há uma diversidade de soluções propostas para cada um deles. Cada
possível solução tem seus benefícios, mas também efeitos colaterais
indesejados. O voto distrital, por exemplo, aproximaria o eleitor de seu
representante, aumentando a transparência e fiscalização sobre o comportamento
do parlamentar. Por outro lado, ampliaria o viés localista da ação dos
deputados federais: eleitos por pequenos distritos, eles teriam como principal
preocupação levar benefícios para seus eleitores, em vez de se concentrarem nas
questões políticas de âmbito nacional. Adicionalmente, sistemas com voto
distrital tendem a subrepresentar as minorias. O voto em lista fechada, por sua
vez, reduziria custos das eleições e aumentaria a fidelidade partidária, mas
traria o risco de uma elite de dirigentes partidários passar a acumular poder
excessivo e impedir a ascensão de novos líderes.
Ou seja, há muitos dilemas envolvidos nas escolhas a
serem feitas em reformas do sistema político. A sociedade e os partidos
políticos estão fortemente divididos sobre qual a melhor opção, muitas vezes em
função de interesses ocasionais e de projeto de poder.
Compare-se essa situação com, por exemplo, uma reforma
do sistema previdenciário. Aqui o problema tem dimensão bem mais restrita. Há
quem afirme que vai tudo bem com a previdência e que nenhuma reforma é
necessária. E há os que apontam que o déficit previdenciário é insustentável no
longo prazo. A reforma resume-se a aceitar o diagnóstico da necessidade de
ajuste (e aprovar a reforma), ou discordar do diagnóstico (e rejeitar a
reforma). Obviamente há disputa de grupos de interesses, e discordância sobre
como atingir os objetivos da reforma. Mas há muito menos dilemas e incertezas a
serem considerados no debate e decisão política do que no caso da “reforma
política”. Tanto os diagnósticos quanto as possíveis soluções estão mais
maduras e o espectro de possíveis reformas é mais reduzido.
Usar o precioso primeiro ano de mandato de um
governo para abrir um debate sobre reforma política seria abrir uma caixa de
pandora. Perder-se-ia a oportunidade de ouro de viabilizar outras reformas,
também difíceis de fazer, porém “menos inviáveis” que temas afetos à reforma
política.
3 – Embora tenha muitos problemas, as regras de funcionamento do
sistema político não paralisam o processo decisório: o Presidente da República
tem poder suficiente para melhorar políticas públicas e fazer outras reformas.
As regras do sistema político brasileiro, ao longo
dos quase trinta anos de democracia, foram sendo adaptadas no sentido de
garantir governabilidade, dando ao Presidente da República instrumentos
políticos suficientes para colocar em prática seu programa2. Ainda que isso tenha
sido obtido por meio de alto custo fiscal, com baixa transparência, limitações
à eficiência do governo, espaço para corrupção, entre outros problemas.
A Constituição de 1988 não promoveu mudança radical
no sistema de representação política e nas regras eleitorais vigentes no regime
militar. Fez apenas adaptações ao que então existia. Manteve-se o regime
presidencialista com um Congresso bicameral, no qual a Câmara dos Deputados e o
Senado constituem duas instâncias decisórias distintas. Todas as matérias submetidas
ao Congresso devem ser votadas em uma casa e revista pela outra. Manteve-se
também o sistema federativo, com três níveis de governo: União, estados e
municípios.
Isso significa que há diversas instâncias com poder
para interferir em decisões políticas. O Poder Executivo federal, para ter uma
política pública posta em prática, precisa não apenas obter maioria nas duas
casas do Congresso, como também evitar contrariar os interesses de estados e
municípios, que dispõem de razoável poder de influência sobre os deputados e
senadores representantes de seus respectivos estados.
O Poder Executivo federal, todavia, dispõe de
instrumentos que são fortes o suficiente para garantir ao Presidente da
República a liderança na ação política e o controle fiscal. O primeiro desses
instrumentos são as Medidas Provisórias (MP). Trata-se de leis, de validade
provisória, porém imediata, que o Presidente pode decretar sem a prévia
aprovação do Congresso. Uma vez instituída uma medida provisória, o Congresso
tem prazo para aprovar, emendar ou alterar essa medida, transformando-a em lei
de caráter definitivo. Esse instrumento constitui uma adaptação dos
“decretos-lei” criados no regime militar. Na forma adotada na nova
constituição, as MP têm tramitação prioritária no Congresso e, enquanto houver
MP pendentes de votação, o Congresso não pode deliberar sobre grande parte de
outras espécies de projeto de lei. Isso
dá ao Presidente da República o poder de definir a agenda do Congresso, colocando
os assuntos que considera prioritários no topo da agenda de votações do
legislativo.
O Presidente da República dispõe, ainda, de outros
instrumentos importantes na sua relação com o Congresso. Ele pode solicitar que
determinado projeto de lei tramite em regime de urgência, fazendo-o saltar à
frente de outros projetos na prioridade de votação. Também tem o poder
privativo de apresentar projetos de lei sobre assuntos específicos (por
exemplo, projetos que criam cargos no governo ou alterem a organização
administrativa dos órgãos públicos), ficando vedado aos congressistas
apresentar projetos dessa natureza.
O modelo de elaboração, votação e execução do
orçamento federal também dá grande poder ao Presidente da República. Cabe ao
Poder Executivo elaborar a proposta de orçamento e apresentá-la ao Congresso. O
Congresso pode alterar as estimativas de receita, bem como acrescentar
despesas. Contudo, a lei orçamentária aprovada pelo legislativo é apenas uma
autorização de gasto, não obrigando o Executivo a fazer a despesa. Assim, se
desejar executar menos despesas que aquelas aprovadas pelo Congresso, o
Executivo tem direito de fazê-lo.
Com o advento da redemocratização, aumentou
fortemente a pressão por gastos públicos. Houve a criação de programas sociais
para atender os pobres (que passaram a ter poder de voto), a ampliação de
benefícios à classe média (que passou a ter a liberdade de associação e
formação de sindicatos, introdução do Regime Jurídico Único para os
funcionários públicos). Isso se somou aos privilégios que os mais ricos sempre
obtiveram do estado (subsídios creditícios e fiscais, por exemplo). Frente ao
inevitável aumento de despesas, a política fiscal do governo federal é
conduzida de forma a tentar equilibrar as contas por meio do aumento da carga
tributária. E o Presidente da República efetivamente tem poder para tal. Apesar
de todos os defeitos do nosso sistema político, foi possível, em 1999-2000,
instituir uma série de medidas fiscais, entre elas a Lei de Responsabilidade
Fiscal, que reduziram significativamente o déficit público e viabilizaram o fim
definitivo da hiperinflação, obtido em 1994.
Ademais, o Presidente da República lança mão do
direito de não executar parte das despesas contidas no orçamento. O alvo
principal desses cortes têm sido os acréscimos feitos pelos congressistas à
despesa orçamentária. Trata-se das chamadas “emendas parlamentares ao
orçamento”. Ao liberar a conta-gotas os recursos para pagar tais despesas, o
Executivo ganha poder de barganha para controlar o voto dos deputados e
senadores. É comum que tais recursos sejam liberados apenas após votações
importantes no Congresso, beneficiando aqueles que votaram a favor do Poder
Executivo.
Esse instrumento dá ao Presidente o poder de formar
maiorias circunstanciais para aprovar projetos de lei e emendas constitucionais,
ainda que ao custo de liberar recursos para obras e programas que podem não ser
de prioridade nacional. Já foram apontados, também, diversos casos de corrupção
ligados às emendas parlamentares. Mas para solucionar esse tipo de problema não
é necessária “uma ampla reforma política”, e sim mais transparência,
fiscalização e punição de ilícitos.
O Poder Executivo federal pode, ainda, controlar do
ritmo de endividamento dos estados e municípios. A maioria dos empréstimos
feitos por esses governos tem que ser explicitamente autorizada pelo Poder
Executivo federal. Embora esse controle tenha sido frouxo nos primeiros anos
após à redemocratização, o que levou a uma crise de sobreendividamento dos
entes subnacionais, a partir do ano 2000 tais controles foram reforçados (e
afrouxados a partir de 2008). Com isso, o Governo Federal tem poder para
induzir estados e municípios a equilibrar suas contas e cooperar no esforço
fiscal agregado.
Em suma, não obstante todos os defeitos das
instituições político-eleitorais, há espaço para governabilidade. Um Poder
Executivo dotado de um programa de governo e uma agenda de reformas tem espaço
para realizá-los. Ainda que isso tenha custos de curto prazo, como a liberação
de gastos orçamentários não-prioritários, o aumento da carga tributária para
financiar esses gastos e a oportunidade de corrupção na execução do orçamento.
Parte desses efeitos colaterais pode ser combatida por fortalecimento de
instituições como o TCU, a Polícia Federal e a Secretaria do Tesouro Nacional, sem
que seja necessário recorrer a “reforma política” para minimizá-los. Talvez a
reforma necessária não esteja no sistema político, mas sim na justiça penal
que, com sua morosidade, abre espaço para corrupção e mau-feitos sem que haja
ameaça de punição aos infratores.
4 – As regras eleitorais geram, de fato, efeitos colaterais
negativos para as finanças públicas e o crescimento do país…
Não obstante dispor de amplos poderes, o Poder
Executivo não tem força para governar sozinho. Isso é não é um defeito, e sim
uma virtude de um regime democrático, que necessita de checks and balances
entre os poderes. Esses checks and balances, contudo, podem ser exercidos de
forma distorcida, ou estar baseados em incentivos inadequados.
O Congresso, se não tem muito espaço para definir a
lista de projetos prioritários para votação e pode ter a sua intervenção no
orçamento desfeita pelo Executivo, tem poder para rejeitar ou alterar os
projetos de lei e as MP propostas pelo Executivo. O fato de essas propostas terem que ser aprovadas tanto na Câmara
quanto no Senado aumenta o poder de barganha dos congressistas. Há, ainda,
matérias que demandam quórum elevado, como as emendas à Constituição, que
tornam ainda maior tal poder de veto do Congresso.
O Congresso pode, também, instituir comissões de
inquérito para investigar ações do Poder Executivo; vetar o acesso de pessoas indicadas pelo
Presidente de República para exercer cargos em agências reguladoras e outros
órgãos públicos; convocar membros do Executivo para inquirir sobre a condução
de políticas.
Todas essas ações, importantes instrumentos de
equilíbrio de poder em uma democracia, criam também a possibilidade de se
“criar dificuldades para vender facilidades”, criando embaraços à gestão
pública, ou aumentando o gasto público,
ou criando regulação que favoreça grupos de pressão.
Para conseguir aprovar suas propostas políticas e
evitar ações do Congresso que contrariem seus interesses ou desequilibrem as
contas públicas, o Presidente da República necessita formar maioria tanto na
Câmara quanto no Senado. A formação dessas maiorias depende dos incentivos que
deputados e senadores têm para votar a favor do governo. E tais incentivos são
formatados pelas regras eleitorais.
Na eleição para a Câmara dos Deputados, cada estado
da federação tem direito a um número fixo de cadeiras. O eleitor vota em um
candidato específico. O voto ao candidato é computado a favor do seu partido.
As cadeiras da Câmara dos Deputados que cabem a um determinado estado são
divididas entre os partidos proporcionalmente à fatia de votos que cada
agremiação recebeu. As vagas conquistadas por cada partido são preenchidas
pelos candidatos mais votados.
Esse sistema de votação tem várias implicações. Em
primeiro lugar, ele reduz a disciplina partidária, porque o candidato a
deputado disputa contra os seus próprios companheiros de partido. Para ser
eleito, não basta que o partido tenha muitos votos. É preciso estar entre os
mais votados do partido. A tendência é que cada candidato tenda a fazer
campanha individualmente. Não faz sentido fazer campanha em conjunto com outro
candidato do mesmo partido, que pode tomar a sua vaga. Menor disciplina
partidária significa que os líderes dos partidos não terão forte comando sobre
sua bancada e, por isso, não poderão conduzir negociações com o Executivo em
nome de toda a bancada. Sempre haverá espaço para cada deputado,
individualmente, votar contra a orientação de seu partido. Isso força o Poder
Executivo a negociar o apoio a suas iniciativas no varejo, oferecendo a cada
deputado ou senador, individualmente, vantagens para mantê-los na base de apoio
ao governo.
Em segundo lugar, os candidatos disputam voto em
todo o território estadual, pois não há divisão dos estados em distritos
eleitorais menores. Como o Brasil é um país de dimensões continentais, os seus
estados têm amplos territórios. A combinação de campanha individualizada com um
distrito eleitoral grande, que precisa ser percorrido pelo candidato (com
instalação de comitês eleitorais e outras despesas) torna bastante alto o custo de campanha para
cada candidato3. Estes precisam encontrar formas de financiar suas campanhas.
Uma forma de fazê-lo é buscar a contribuição de lobbies, o que facilita a
captura do mandato parlamentar por interesses específicos. Isso reforça o incentivo
de cada parlamentar a negociar individualmente com o Executivo a sua
permanência na base de apoio, com vistas a atender os interesses específicos de
seus financiadores.
Outra estratégia muito comum é o candidato focalizar
a busca de votos em uma região específica do estado. Nesse caso, ele se
compromete a, durante o mandato, obter recursos federais para um determinado
grupo de municípios. São esses incentivos que fazem com que os parlamentares
queiram alterar o orçamento federal, com vistas a introduzir despesas de
interesse local. Como afirmado acima, o Presidente da República tende a
represar essas despesas, liberando-as apenas à medida que os parlamentares
nelas interessados votem de acordo com a orientação do governo. Nada impede,
também, que as emendas parlamentares ao orçamento sejam apresentadas com vistas
a se fazer despesas que beneficiarão grupos econômicos que deram suporte à
campanha do parlamentar.
Outra característica importante do sistema eleitoral
é que ele permite a eleição de representantes de grupos os mais diversos,
inclusive a representação de minorias. Em um sistema de votação em que o estado
da federação é repartido em vários distritos e, em cada um deles, há eleição de
somente um representante, um grupo minoritário, disperso no território
estadual, não conseguirá maioria em nenhum distrito, e não conseguirá ser
representado no Congresso. No sistema brasileiro, um grupo minoritário pode
somar os seus votos espalhados por todo o território estadual e eleger o seu
representante.
Em consequência, há estímulo para que os políticos
se especializem em representar os interesses de categorias profissionais
específicas, ou patrocinem os direitos de grupos étnicos, de grupos religiosos,
de setores econômicos (ruralistas, indústrias, etc.). Com muita frequência
formam-se bancadas informais, compostas por parlamentares de diferentes
partidos, para representar um interesse específico (bancada da saúde pública,
bancada da segurança pública, bancada ruralista, etc.).
Essa dispersão de interesses permite que os diversos
agrupamentos se organizem, no Congresso, para pressionar por despesa pública e
regulação a favor dos grupos que representam. Como a responsabilidade política
pelo equilíbrio fiscal e pelo desempenho macroeconômico cabe ao Poder Executivo,
os deputados têm pouco interesse em manter o equilíbrio orçamentário. Para
eles, quanto mais despesas conseguirem enxertar no orçamento, melhor. Daí a
importância do mecanismo que dá ao Executivo o poder de represar despesas
orçamentárias.
O sistema eleitoral também gera incentivos para a
criação de um grande número de partidos. Em primeiro lugar, porque cada partido
tem direito a verbas públicas e a espaço gratuito na TV para fazer propaganda.
Em segundo lugar, porque é possível formar coligações partidárias para disputar
as eleições para a Câmara: vários partidos se unem e seus votos e cadeiras na
Câmara são contados como se fossem um único partido. Ser líder de um partido,
ainda que pequeno, garante ao político poder, verbas e flexibilidade para fazer
coalizões de ocasião.
A forte dispersão de interesses e o grande número de partidos força o Poder
Executivo a formar maiorias no Congresso por meio da distribuição de benesses
ou ampliação de políticas públicas que atendam os mais diversos grupos sociais.
Dificilmente o partido que vence as eleições presidenciais consegue maioria na
Câmara dos Deputados. Por isso, é preciso formar alianças, no que ficou
apelidado de “presidencialismo de coalizão”.
Alguns partidos políticos se especializaram na
função de “partidos de apoio ao Executivo no Congresso”. Em vez de buscar o
poder apresentando um candidato à Presidência da República, esses partidos se
concentram na formação de ampla bancada na Câmara e no Senado, comandada por
hábeis líderes, e se apresentam aos partidos que têm candidatos competitivos à
presidência oferecendo a tão necessária
maioria parlamentar.
O preço cobrado vem sob a forma de cargos no
governo, postos na direção de empresas estatais, liberação de recursos
orçamentários, regulação que protegem grupos profissionais ou econômicos em
detrimento do resto da sociedade. Uma simples estatística ilustra bem como a
necessidade de acomodar políticos no Poder Executivo, para garantir coalizão
majoritária no Congresso, resulta na expansão da máquina pública. No primeiro
governo após à redemocratização, o Poder Executivo Federal tinha 25
ministérios. Vinte e seis anos (ou seis mandatos presidenciais) depois, esse
número havia chegado a 39! Aumentam-se não apenas as vagas de ministro, como
também criam-se ampla burocracia pública e cargos, muitos deles de
preenchimento por indicações de políticos.
Há, ainda, a
dimensão regional da distribuição de poder. Os militares haviam ampliado o
número de cadeiras da Câmara dos Deputados que cabiam aos estados menos
desenvolvidos, coincidentemente, os menos populosos. O objetivo à época foi
garantir apoio político ao regime militar das lideranças regionais mais
dependentes de ajuda financeira federal, além do fato de imperar, nas regiões
mais atrasadas, um modelo de controle do eleitorado por líderes políticos
locais.
Nos estados
mais desenvolvidos, com eleitores de maior renda, mais informados e vivendo
predominantemente em grandes cidades, o poder de comando de chefes políticos
era menor. A nova constituição acentuou a desproporcionalidade da representação
em favor dos estados menos desenvolvidos, situados nas regiões Norte e Nordeste
do país. Em primeiro lugar, vários territórios federais localizados na região
Norte, que não tinham representação no legislativo, foram transformados em
estados, passando a ter direito a deputados e senadores para representá-los. Em
segundo lugar, fixou-se um número mínimo de oito deputados por estado,
independente do tamanho da população.
Com isso, os estados das regiões mais atrasadas
(Norte e Nordeste) ou de desenvolvimento mais recente (Centro-Oeste) conseguem
maioria em relação às bancadas do Sul-Sudeste, mais desenvolvido. Norte,
Nordeste e Centro-Oeste, juntos, comandam 74% dos votos no Senado e 50% dos
votos na Câmara, embora abriguem apenas 46% da população. Isso abre espaço para
a barganha por transferências federais para os estados daquelas três regiões. O
viés regionalista do parlamento brasileiro é bastante acentuado.
Essa pressão de origem estadual ou regional
restringe, também, o uso dos poderes legais do Executivo federal para conter o
endividamento dos estados e municípios. É comum que haja pressão política no
parlamento, em especial no Senado, para que o Governo Federal alivie o controle
do endividamento dos governos subnacionais.
Em suma, o sistema político-eleitoral dá margem a
uma série de distorções que incham o estado, reduzem a eficiência da economia,
criam privilégios a grupos organizados e, em última instância, prejudicam o
crescimento e desenvolvimento do país. Isso não quer dizer, contudo, que uma
reforma das regras eleitorais livraria o país de todos esses problemas,
conforme argumentado a seguir.
5 – O sistema político
eleitoral apenas reflete características históricas da sociedade brasileira: a
“reforma política” não mudará aquelas características e pode agravar os
problemas que deseja resolver
O Brasil é um país extremamente desigual desde os
primeiros anos da colonização, com alta prevalência de clientelismo,
apropriação privada de recursos públicos, rent-seeking e corrupção. A
redemocratização do país que, por um lado abriu acesso dos mais pobres a
políticas públicas, por outro lado permitiu que aquelas características
indesejáveis encontrassem terreno fértil para prosperar. Usa-se a negociação
política, que idealmente deveria se dar no campo das ideias e projetos para o
país, como meio para apropriação de renda e criação de privilégios. Quanto mais
grupos sociais tiverem acesso a esse processo de negociação mais intenso o
conflito distributivo.
As instituições políticas descritas no item anterior
não foram criadas no vácuo. Elas decorrem de escolhas feitas ao longo da
história do país. São mecanismos criados
para mediar de forma eficiente os interesses dos diversos grupos sociais. Mudar
as regras de forma a tentar barrar comportamentos políticos considerados
inadequados pode gerar efeitos colaterais adversos, que resultem em piora da
qualidade do processo decisório e da governabilidade, sem que se corrijam os
problemas originais.
Tome-se, como exemplo, a imposição de limites ao
financiamento privado de campanhas políticas. Ao longo do ano de 2014 o Supremo
Tribunal Federal está julgando causa que pleiteia a proibição desse tipo de
financiamento. O objetivo é impedir que grandes grupos econômicos tenham poder
de influência sobre os políticos eleitos, de modo a reduzir a apropriação de
recursos públicos e a criação de regulação econômica que proteja grupos
específicos em detrimento do resto da população.
Deve-se questionar, todavia, se a proibição de tais
financiamentos vai, efetivamente, bani-los. É possível que apenas aumente o
movimento de dinheiro não declarado (caixa dois), reduzindo a transparência das
eleições. No sistema vigente pode-se identificar claramente qual empresa doou a
qual candidato. Sem registros, fica difícil cobrar explicações dos governantes
sobre porque beneficiou determinada empresa.
Ademais, os políticos podem ficar mais dependentes
de verbas públicas para financiar suas campanhas, o que estimularia a
corrupção, a exploração política das empresas estatais e, sobretudo, daria
vantagem competitiva aos candidatos do partido governista, que têm mais acesso
aos fundos públicos. Ou seja, os rios correm para o mar. Tentar barrar esse
caminho com diques ineficientes pode gerar inundações e outros efeitos
adversos, sem impedir que o rio chegue a seu destino.
Outro exemplo interessante está em uma decisão do
Supremo Tribunal Federal proibindo
congressistas de mudar de partido durante o cumprimento do mandato. O objetivo
era aumentar o poder de comando dos partidos sobre seus membros. Imaginava-se
que com mais disciplina partidária seria mais fácil formar coalizões que dessem
governabilidade ao país, sem a necessidade de o Poder Executivo ter que
barganhar o apoio individual de cada parlamentar em cada votação importante no
Congresso.
No entanto, a corte suprema não podia proibir a
criação de novos partidos, o que significa deixar aberta a possibilidade de se
sair de um partido para formar nova agremiação. Indivíduos que se dispuseram a
incorrer no custo de cumprir as exigências formais para criar partidos (muitas
delas de difícil cumprimento, como a coleta de milhares de assinatura em todo o
país) passaram a ofertar vagas a parlamentares desejosos de sair de seus
partidos. Obviamente essa oportunidade adquire valor monetário. Não se resolveu
o problema original e se agregou mais uma distorção ao sistema.
Além dos efeitos colaterais indesejados, as
tentativas de reforma política esbarram na resistência dos interesses
estabelecidos. Os políticos e partidos que votarão essas reformas são aqueles
que foram eleitos pelas regras vigentes. Portanto, são os beneficiários de tais
regras. Vê-se, então, a dificuldade em se mudar tais regras. Em 2007, por
exemplo, aprovou-se uma “cláusula de barreira”, que exigia votação mínima para
que um partido tivesse representação no Congresso. Tal regra foi contestada
junto ao STF pelos partidos prejudicados e acabou sendo considerada
inconstitucional pela corte suprema.
Exemplo similar está no caso da “verticalização das
coligações eleitorais”. A título de impor coerência programática aos partidos
políticos, o Tribunal Superior Eleitoral expediu, em 2006, uma resolução
proibindo que os partidos políticos fizessem, nas eleições estaduais,
coligações partidárias diferentes daquelas formadas para o pleito nacional. A
regra retirava flexibilidade para a negociação política nos diferentes estados.
Dado que os partidos políticos têm pouca homogeneidade programática e, em cada
estado, abrigam diferentes grupos políticos (em algumas unidades da federação
dois partidos podem abrigar grupos aliados, em outras grupos adversários), a
regra simplesmente contrariou a realidade política do país. Não obstante a sua
meritória intenção, foi revogada pela Emenda Constitucional n. 52, de 2006,
que, aprovada rapidamente, retirou essa nova regra de circulação.
6 – O que fazer?
Deve ser possível fazer reformas no sistema
político-eleitoral que reduzam os efeitos desse sistema sobre a política
fiscal, a governabilidade e a qualidade da gestão pública. Todavia, cada
alternativa de regra eleitoral e de representação tem suas vantagens e
desvantagens, não sendo fácil se chegar a acordo acerca de que regras geram
resultado superior para a média da sociedade. Reformar diversas regras ao mesmo
tempo multiplica a complexidade do problema,
desde a dificuldade de aprovação até à imprevisibilidade das
consequências e efeitos colaterais.
Assim, ao contrário do que muitas lideranças
políticas e analistas argumentam, uma reforma política ampla, seja ela qual
for, está longe de ser o santo graal que restabelecerá a virtude e a
racionalidade na gestão pública brasileira. Seja porque sua aprovação será
muito difícil, seja porque haverá efeitos colaterais indesejados ou, ainda,
porque permanecerá intacto o conflito distributivo e o incentivo a se usar o
Estado como fonte de rendas e privilégios.
O sistema político-partidário vigente mostra-se
compatível e funcional em um contexto em que diversos grupos sociais
heterogêneos disputam benesses e regulação estatal a seu favor. Por isso,
talvez seja mais interessante dar prioridades a reformas que ajudem a aliviar o
conflito distributivo existente no país.
Para isso, é preciso crescer mais rápido e
distribuir renda de forma mais eficaz. Deve ser dada prioridade a reformas
institucionais que, ao mesmo tempo, estimulem o crescimento econômico e reduzam
a desigualdade. No topo dessa lista de prioridades deve estar a reforma da
previdência social, pois ela não só bloqueia o crescimento (ao gerar grande déficit
público no presente e incerteza quanto à sua sustentabilidade futura) como
concentra renda (por pagar benefícios mais elevados a trabalhadores da classe
média e garantir pensões e aposentadorias sem equilíbrio atuarial).
Também prioritária deve ser a busca por melhoria na
educação pública. A educação aumenta a produtividade (e, portanto, o
crescimento) ao mesmo tempo em que aumenta a igualdade de oportunidade, abrindo
espaço para redução da desigualdade e da pobreza. Investimento em
infraestrutura urbana de atenção aos mais pobres, como saneamento e transportes
urbanos de massa também atuam no sentido de aumentar a produtividade dos
trabalhadores e melhorar as oportunidades de emprego e de ascensão social.
Em paralelo a isso, é preciso investir em reformas
fiscais (muito mais simples que as complexas propostas de reforma política) que
imponham maior disciplina ao gasto e ao endividamento públicos, seja por meio
de transparência, seja por meio de regras fiscais críveis. Havendo maior
restrição orçamentária diminuirá o espaço para que diferentes grupos de
interesse consigam extrair renda do Estado.
A gestão cotidiana do orçamento também pode ajudar
muito: procedimentos de auditoria dos gastos, análise de custo-benefício dos
programas públicos, elaboração de programas federais estruturados que
transformem as emendas parlamentares em gastos eficientes, melhorias no
planejamento e execução de obras públicas, aperfeiçoamento na legislação de
compras públicas e na participação do setor privado em investimentos de
infraestrutura. Todas essas são medidas mais fáceis de colocar em prática que
uma reforma política de amplo espectro.
Melhorias do sistema judicial que levem à efetiva e
rápida punição da corrupção também ajudariam a disciplinar o mercado das negociações
políticas. Em especial é preciso tornar a justiça mais rápida e menos sujeita a
recursos e chicanas.
Para que os criminosos de colarinho branco sejam
efetivamente levados à justiça, é essencial que a Polícia Federal e o
Ministério Público tenham autonomia de atuação, sempre dentro dos marcos da
legalidade e transparência. Ademais, a imprensa não pode ter sua liberdade de
informar cerceada.
Uma vez que essas reformas desencadeiem um ciclo
virtuoso de menos corrupção, maior eficiência do
estado, maior crescimento
econômico e menor desigualdade, surgirá uma classe média, com boas perspectivas
de ascensão social. Essa nova classe média terá força política e eleitoral para
resistir à captura do Estado por grupos de interesse. Somente quando chegarmos
a essa sociedade mais homogênea, com setor público mais eficiente e com maior
potencial de crescimento econômico é que haverá espaço para a implantação de um
sistema político menos baseado no uso do Estado como fonte de renda e
privilégios. Aí as reformas políticas ocorrerão como consequência natural da
preferência da maioria do eleitorado.
No nosso atual estágio de desenvolvimento
institucional, falar em reforma política ampla é fazer fumaça para esconder os
verdadeiros problemas. Nessa área as reformas devem ser pontuais, alterando-se
paulatinamente as regras, testando-se o seu efeito nas eleições seguintes. Um
bom exemplo disso é a “lei da ficha limpa”, que foi aprovada isolada de
qualquer iniciativa de alteração mais ampla das regras eleitorais; tem sido
posta em prática nas eleições recentes, e seus efeitos têm sido observados e
divulgados pela imprensa, medidos e analisados pelos acadêmicos e modulados
pela justiça eleitoral.
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1 Ver, por exemplo: Dantas, H. (2010) Reforma
política: aspectos centrais da mãe de todas as reformas.In: Dantas et al.
Reforma do estado brasileiro: perspectivas e desafios.Cadernos Adenauer. Konrad
Adenauer Stiftung.
2 Uma descrição sintética das instituições políticas
brasileiras e abundantes referências bibliográficas podem ser obtidas em Cintra
(2004).
3 Samuels (2001a) e (2001b) mostra como as eleições
brasileiras são caras quando comparadas a outras democracias.