No lugar de insistir numa reforma de
cima para baixo, governo deveria voltar à federação, dar autonomia aos Estados
e aos municípios em todas suas esferas
André
Lara Resende, no Estadão
O
sentimento em relação ao Brasil no exterior mudou em 2013. O otimismo no País já
vinha em queda há algum tempo, mas a percepção externa parece ter finalmente
alcançado - e até mesmo ultrapassado - o recente desalento doméstico. A
evidente deterioração da situação fiscal brasileira - apesar do uso de todo
tipo de manobras contábeis para impedir que a extensão da piora fique clara - é
o fator mais preocupante para analistas e investidores estrangeiros. A queda do
superávit primário se refletiu num aumento do prêmio de risco, medido pelo
seguro financeiro contra a probabilidade de calote - os chamados CDS - da
dívida brasileira.
A alta do
prêmio de risco, se entendido como a probabilidade de o país vir a ter problema
de solvência com sua dívida pública, como ocorreu no passado recente, parece-me
despropositado. A dívida em moeda estrangeira, especialmente a dívida pública,
é pequena, não passa de 5% do PIB. Mesmo a dívida bruta total, que os truques
contábeis têm menos capacidade de maquiar, está entorno de 60% do PIB. É alta,
mas está longe de ser preocupante. O prêmio de risco reflete um desconforto
mais difuso sobre o futuro do país. Os problemas são muitos, a grande maioria
deles não é nova, mas há uma dimensão especialmente grave no atual quadro
brasileiro: um Estado despreparado, patrimonialista, com objetivos próprios,
dissociados da sociedade.
Desde a
estabilidade monetária, o país vinha fazendo avanços sistemáticos na ordenação
das finanças públicas. A carga fiscal passou de 25% para 36% do PIB e a dívida
pública estava em queda. O processo foi revertido a partir de 2008. É
preocupante, mas o problema do Estado brasileiro, hoje, não é de solvência, nem
de descontrole macroeconômico, que poderia ser revertido, mas o fato de atuar
contra a sociedade, a favor de seus interesses próprios. O custo do Estado está
hoje perto de 40% da renda anual, equivalente aos mais altos do mundo, mas seu
desempenho é abaixo da crítica.
O papel
do Estado sempre foi um tema polêmico. Durante o século 20, tomou contornos
ideológicos tão demarcados que praticamente inviabilizou o debate sereno e
reacional. Parece inevitável que sociedades maiores e mais complexas sejam mais
difíceis de ser administradas, exijam mais das empresas, das instituições e
também do Estado. Há uma inexorável correlação entre tamanho e complexidades em
toda empreitada humana. O mundo está superpovoado e definitivamente interligado
pelo avanço das comunicações e da informática. A questão da escala e da
complexidade está em toda parte, mas é ainda mais grave onde é menos
reconhecido: na esfera da vida pública. As sociedades modernas se sofisticaram,
tornaram-se mais complexas. O Estado foi obrigado a crescer para atender às
suas novas funções.
Em livro
de 2011, Vito Tanzii faz uma isenta e ponderada análise do inexorável avanço do
Estado sobre todas as esferas da vida. O peso do Estado cresceu
sistematicamente em toda parte do mundo. A proporção da renda extraída da
sociedade pelo Estado, que era geralmente inferior a 10% no início do século
20, dobrou lá pela metade do século, até atingir mais de 40%, neste início de
século 21. O avanço foi sistemático, sobretudo a partir da década de 30.
Quando se
exige mais do Estado, é razoável que o seu custo suba, mas espera-se que haja
alguma correlação entre o custo e o serviço prestado, entre o custo e a
qualidade do Estado. Não foi o que ocorreu no Brasil. Ao contrário, a rápida
elevação recente da fatia da renda extraída da sociedade não foi acompanhada
pelo investimento em infraestrutura. Houve séria deterioração da segurança
pública e um dramático aumento da criminalidade. Não houve melhora digna de
nota nem na educação, nem na saúde. O saneamento e o transporte público continuam
abaixo da crítica.
Notícias
recentes indicam que mais de 20% das pessoas - até 50% em alguns Estados -
dizem terem sido vítimas de assaltos nos últimos doze meses. O nível de
compreensão da língua e da matemática dos alunos brasileiros, segundo resultados
recém-divulgados do PISA, exame de avaliação internacional de estudantes
conduzido pela OCDE, é deplorável. O Brasil continua entre os últimos
colocados, junto com a Albânia, a Tunísia e a Jordânia, muito abaixo do Chile e
do México.
O World
Economic Forum publica anualmente um índice global de competitividade. O Brasil
caiu para o 56.º lugar este ano. Ocupa o 80.º lugar em relação ao funcionamento
das instituições e a 124.ª posição em relação à eficiência do governo. A
educação está na 121.ª posição e a confiança nos políticos, na 136.ª. Os
bolsões de excelência tecnológica e a qualidade do empresariado ocupam a 36.ª e
a 39.ª posições. As estatísticas e os rankings apenas confirmam uma realidade
perceptível a olho nu: o Estado brasileiro não está à altura do estágio de
desenvolvimento do País.
A herança
patrimonialista, misturada aos desafios de um país grande e desigual, a meio
caminho para o mundo desenvolvido, criou um Estado caro, ineficiente e,
sobretudo, disfuncional. Um Estado cujo único objetivo é viabilizar a expansão
de seu poder e de suas áreas de influência. Um Estado que cria uma
regulamentação kafkiana, com exigências burocráticas cartoriais absurdas, cujo
resultado é aumentar custos, reduzir a produtividade e complicar todas as esferas
da vida. O patrimonialismo do Estado brasileiro, sua incapacidade de respeitar
os limites e os deveres em relação à sociedade, tem longa tradição, mas toma
novos contornos com a sofisticação da economia, com a chegada do País à
sociedade do espetáculo e à democracia de massas. O uso e o abuso das técnicas
publicitárias, a criação de dificuldades de toda ordem para a venda de
facilidades, a simbiose com cultura dos direitos especiais adquiridos e a
aliança com grupos econômicos selecionados são a nova face do velho
patrimonialismo.
Crítica. Diante da polarização do debate,
a crítica ao patrimonialismo do Estado tende a ser desqualificada como uma
reação conservadora aos avanços da cidadania. Cada uma das dimensões do
progresso da cidadania - a civil, a política e a social - enfrentou, a seu
tempo, fortes reações ideológicas. O século 18 foi palco da luta pela cidadania
civil, pelos direitos de opinião, de expressão e à justiça. No século 19,
avançaram os aspectos políticos da cidadania, o direito ao voto e de
participação política. Finalmente, no século 20, sobretudo a partir da década
de 30, houve o avanço da dimensão social, com a criação dos sistemas de
assistência e previdência, de educação e de saúde pública, capazes de garantir
um padrão de vida mínimo para o exercício das demais dimensões da cidadania.
Adotado
depois da grande crise do capitalismo do início dos anos 30 do século 20, o
Estado Assistencialista foi uma forma de aliviar as pressões sociais e o apelo
do comunismo marxista, mas nunca deixou de enfrentar resistência. Resistência
que encontrou na teoria econômica um poderoso aliado. A economia sempre teve um
de seus pilares na tese de que os mercados competitivos tendem ao equilíbrio
eficiente. O mercado competitivo é uma construção intelectual, uma referência
importante para a alocação eficiente de recursos, mas a polarização ideológica
levou a uma inferência indevida: a de que toda interferência governamental
sobre o livre mercado seria contraproducente.
Com a
vitória incontestável dos direitos sociais, a teoria econômica paga até hoje o
preço político de ser percebida como intrinsecamente conservadora. Toda crítica
à falta de critérios e à ineficiência do gasto público, sobretudo se embalado
como gasto social, é tachada de reacionária e desconsiderada. No Brasil de
hoje, o velho patrimonialismo do Estado se esconde por trás do
assistencialismo. O patrimonialismo indefensável reveste-se de assistencialismo
inatacável. Desde que sob o guarda-chuva de gasto social, toda sorte de abuso
patrimonialista não admite questionamento.
A divisão
do trabalho, o comércio internacional e os mercados são poderosos estímulos à
criação de riqueza, mas dependem de leis, instituições e do Estado
inteligentemente organizado. A complexidade do mundo contemporâneo exige do
Estado ainda mais do que suas funções clássicas. As modernas sociedades
democráticas requerem, necessariamente, algum tipo de assistencialismo
distributivista, o que exige a coordenação do Estado. O desafio é ter um Estado
competente, que contribua para uma sociedade melhor e cujos serviços
justifiquem seu custo.
Um
seminário recente, em Viena, em homenagem a Peter Drucker, reuniu expoentes da
administração para discutir o tema da complexidade no mundo contemporâneo.
Concordaram que a gestão dos negócios está mais complicada do que jamais foi e
que a capacidade de lidar com a complexidade é prioridade na agenda dos
empresários. Como em todas as outras esferas da vida contemporânea, os homens
de negócios são confrontados com muito mais de tudo a todo tempo.
Duas
linhas alternativas de interpretação se delinearam. A primeira é de que é
preciso simplificar, concentrar em alguns poucos objetivos, dar às empresas um
foco e uma direção para os que nela trabalham, ainda que por imposição, de cima
para baixo. A segunda interpretação sustenta que a maior complexidade é apenas
uma nova ordem, que exige a revisão do modo de se administrar. A revolução das
comunicações e da informática tornou obsoleta a administração linear, de
comando e controle, que deve ser substituída por uma nova, baseada em redes
espontâneas de módulos autônomos. O mundo contemporâneo é não linear e as
empresas, assim como as demais instituições, ainda não se adaptaram a essa não
linearidade. O caminho a ser seguido é reconhecer a nova ordem e não insistir
na tradicional gestão de comando e controle, pois é a imposição de um estilo
anacrônico de gestão que é contraproducente na complexidade contemporânea.
As duas
interpretações exprimem as alternativas para se lidar com a complexidade contemporânea,
não apenas na vida empresarial, mas também na vida pública. A opção por
simplificar, ainda que de cima para baixo, por concentrar em alguns objetivos
claros e dar uma direção para o país, tem enorme apelo diante das dificuldades
da democracia representativa. O encanto provocado pelo novo capitalismo de
estado chinês é exemplo do apelo da simplificação autoritária. Como demonstrou
a experiência soviética, é sempre possível acelerar o crescimento por meio da
mobilização centralizada de poupança e do investimento estatal, com base em
grandes planos, formulados a partir de um "projeto nacional" definido
pelo Estado. A estratégia demonstrou ser bem-sucedida para as economias de
baixa renda, onde as taxas de poupança e investimento são limitadas pelas necessidades
básicas de consumo. Enquanto se percorre caminhos tecnológicos conhecidos, é
possível acelerar autoritariamente o crescimento, mas quando a economia se
aproxima da fronteira tecnológica, a estratégia do planejamento estatal deixa
de obter resultados.
Tendo
aprendido as lições do fracasso do planejamento central soviético, o
capitalismo de estado chinês compreendeu que não poderia prescindir dos
mercados. Usa as companhias estatais para garantir investimentos nos setores
considerados estratégicos e utiliza empresas privadas escolhidas para dominar
os mercados. Os resultados foram extraordinários, mas as tensões e desafios têm
aumentado. Embora a China tenha dado sinais de que pode vir a aumentar o papel
dos mercados, é pouco provável que a flexibilização mude a essência do modelo.
Seu objetivo é manter o poder político concentrado na mão do Estado e a
maximizar a probabilidade de perpetuação do governo.
Há uma
diferença fundamental entre o Brasil e a China. A China tem uma tradição
milenar de autoritarismo burocrático competente. O custo do Estado é menos de
30% renda e está em queda. Já a participação do Estado no investimento, na
chamada formação bruta de capital fixo, é de 21% do PIB. Ou seja, só o
investimento direto do Estado chinês é uma proporção maior da renda nacional do
que todo o investimento brasileiro, público, privado e estrangeiro, que não
chega a 19% do PIB. Na China, o Estado é competente, custa pouco e investe
muito. No Brasil, o Estado é caro e incompetente, não investe, nem cumpre suas
funções básicas.
É
questionável se o investimento estatal direto ainda seria capaz de fazer a
diferença e acelerar o crescimento no Brasil. O modelo foi adotado por aqui
durante o regime militar. Depois de reformas modernizadoras, inteligentemente concebidas
e adotadas com competência, as taxas de crescimento atingiram níveis de até
dois dígitos, durante o chamado "milagre econômico", da primeira
metade da década de 70. O seu esgotamento, a partir da década de 80, deixou um
triste legado: o Estado deficitário e endividado, as empresas estatais
esclerosadas e duas décadas de estagnação sob o signo da inflação crônica.
Modelo. Na última década, o Brasil se
beneficiou do ganho nas relações de troca com o exterior. A alta dos preços dos
produtos primários, provocada pela demanda da China, significou uma expressiva
transferência de renda para o Brasil. Os governos do PT foram suficientemente
inteligentes para manter as bases da política macroeconômica, mas passaram a
desmontar as reformas que viabilizaram a estabilidade monetária. O processo se
acelerou a partir da crise de 2008. Aparelharam o Estado, criaram novas
estatais e elegeram parceiros privados incompetentes. Com a desculpa de
praticar uma politica anticíclica, expandiram o gasto corrente do governo, mas
não investiram em infraestrutura. O resultado é conhecido: baixa produtividade,
uma economia que não cresce e contas públicas que se deterioram.
Não é
possível saber se o capitalismo de estado chinês continuará bem-sucedido, mas
uma coisa é certa: o capitalismo chinês requer um Estado competente e
autoritário. No Brasil, não temos a requerida competência, nem desejamos -
quero crer - o autoritarismo. Diante da complexidade do mundo contemporâneo, a
tentação da solução autoritária estará sempre presente, mas o caminho mais
promissor é o da alternativa delineada na conferência de Viena: não insistir na
tradicional gestão centralizada, de comando e controle, mas avançar na
descentralização. Um Estado autoritário e patrimonialista, sustentado pela
demagogia, o marketing e a intimidação, onde apenas as aparências democráticas
são respeitadas, é o caminho mais rápido para volta ao subdesenvolvimento. A
fórmula, como demonstra sua aplicação na Argentina e em outros países vizinhos,
é devastadora.
Não há
como bem governar com o Estado disfuncional. A primeira tarefa de quem pretende
fazer um bom governo será a de reconstruir o Estado. No lugar de insistir numa
reforma de cima para baixo, de comando e controle, deveríamos experimentar a
descentralização. Deveríamos voltar à federação, dar autonomia aos Estados e
aos municípios em todas suas esferas, desde a fiscal, até a segurança, a saúde
e a educação. Como escreveu Hirschman, no prefácio da edição alemã do seu Exit,
Voice and Loyality: "Assim como os economistas, com a ênfase nas virtudes
da competição (i.e. da 'saída'), não deram atenção à contribuição da 'voz', os
cientistas políticos, com seu interesse na participação política e no protesto,
negligenciaram o possível papel da 'saída' na análise do comportamento
político." Tenho a impressão de que mais possibilidade da opção de
"saída" em relação à "voz", isto é, de ter a opção de se
mudar ao invés de protestar, é mais importante do que nunca, num mundo complexo
e interligado.
Os
mercados não são milagrosos, mas um pouco de competição no sistema político,
sob o guarda-chuva de uma verdadeira federação, pode ser a única forma de
viabilizar a complexidade contemporânea com a democracia e a existência de
Estados eficientes e com mais respeito pelos contribuintes.