Para tudo e para todos
Por José Casado, em O
Globo
Quando
ronca, o motor do caminhão ecoa trovoada. É só lembrança — esperança de
sertanejo. São 8.558 “pipeiros” contratados pelo governo para levar água a
1.087 lugarejos, onde a caatinga estende-se “de um vermelho indeciso salpicado
de manchas brancas que eram ossadas”— como descreveu o alagoano Graciliano
Ramos 76 anos atrás. A vida continua na seca.
Nos
últimos três meses, os “pipeiros” desapareceram de algumas áreas do sertão
cearense. A Assembleia Legislativa recebeu relatos de quatro dezenas de casos e
identificou a origem do problema: os contratados não prestaram contas ao
governo. Seguiu-se um “rigoroso inquérito administrativo”. Até acabar, não sai
pagamento. Muito menos “pipa”.
Faz tempo
que as últimas arribações sumiram do céu azul. Na vida em tempo de seca braba,
fartura só de sede. E de burocracia.
Mais
abaixo, em Natal (RN), o governo anuncia a devolução de verbas federais (R$ 10
milhões, com juros). O dinheiro não foi investido, como previsto, em segurança
pública estadual “devido a fatores burocráticos".
Dois mil
quilômetros ao sul, em Araçatuba (SP), a prefeitura conseguiu terminar a
reforma de um Restaurante Popular, capaz de servir até 300 pratos de comida por
dia. A obra custou R$ 1 milhão. Atravessou longos 28 meses, na cadência de
falências de fornecedores, mudanças no projeto e licitações refeitas. Está
pronto, mas continuará fechado. Até a liberação federal.
Ao leste,
na margem esquerda do Porto de Santos (SP), um terminal de cargas químicas e
petróleo vai completar 28 anos de inatividade, entregue ao mato, por causa de
um embrulho burocrático. E pouco além, no Porto de São Francisco do Sul (SC),
um terminal de soja de US$ 200 milhões está há sete anos “em tramitação”. Do
outro lado, navios só atracam depois da entrega de uma montanha de papéis, com
cerca de 190 itens sobre a carga. Levam-se 13 dias para exportar um contêiner,
quando nos países concorrentes não passa de 48 horas.
Em Ijuí
(RS) se desfez o mistério de uma doação de 12 toneladas de roupas da Bélgica
que jamais chegou a uma instituição de caridade local. Passaram os últimos
cinco anos estocadas, por mera burocracia.
No último
5 de dezembro chegou ao Aeroporto de Viracopos (SP) um pacote enviado pela
Universidade de Harvard, dos Estados Unidos. Continha células-tronco para uma
pesquisa do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo. Durante 13
dias funcionários da transportadora alternaram-se na reposição de gelo seco na
tentativa de mantê-las vivas, enquanto burocratas fiscalizavam documentos da
carga num guichê federal.
Há 47
anos, por decreto da ditadura, aboliu-se a exigência de reconhecimento de firma
em documentos. Agora, 17 mil dias depois a Receita Federal anuncia em portaria
que, em oito semanas, vai cumprir essa regra da boa-fé nas relações com os
contribuintes. Com uma exceção, ressalva: “Nos casos em que a lei determine.”
Regulamentos
não faltam. Foram editados 4,7 milhões desde a Constituição de 1988, calcula o
Instituto Brasileiro de Planejamento e Tributação. São 524 novos por dia. Na
eleição presidencial de outubro o país deverá somar 5 milhões de leis e normas,
para tudo e para todos. É um caso de suicídio nacional por asfixia burocrática.