O excesso de trâmites exigidos pelos órgãos públicos e privados demora, frustra e encarece projetos e empresas dos cidadãos
Do El País
Demonstrar
que uma pessoa é ela mesma, preencher infinitos formulários, apresentar
inúmeros documentos, fazer fila em todas as janelinhas dos órgãos públicos... é
uma experiência comum dos cidadãos frente ao Brasil oficial. Herança colonial
ou não, a burocracia, tantas vezes baseada na desconfiança do poder sobre a
sociedade, demora, encarece e frustra projetos, empresas e inclusive destinos,
com aquele trâmite a mais, que muitas vezes é tão absurdo quanto desnecessário.
Nos últimos anos, as novas tecnologias vieram para aliviar a situação, mas o
problema ainda persiste.
"O cartório
é a coisa mais burocrática que existe no mundo", afirma Rosana Chiavassa,
advogada especialista em defesa do consumidor. Fomos colonizados por
portugueses que trouxeram na bagagem a burocracia dos registros e princípios
administrativos que legitimariam a doação de bens da Coroa aos primeiros
beneficiários. O Brasil é um dos poucos países onde a própria assinatura do
cidadão, até os dias de hoje, não vale por si só - ela sempre deve ser
"reconhecida" em um cartório para ser válida em quase todos os trâmites
cotidianos dos brasileiros e processos administrativos de empresas.
A
polêmica de longa data foi exposta no começo de dezembro de 2013 pela
pesquisadora da Universidade de São Paulo Lygia da Veiga Pereira, profissional
que é referência nas pesquisas com células tronco no país. Ela publicou em um blog seu desabafo sobre as dificuldades dos
pesquisadores em receber material do exterior. No post ela lista a burocracia
imposta pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) para liberar
amostras do material para pesquisa - que vieram congeladas desde o centro de
investigação norte-americano Harvard Stem Cell Institute, para uma pesquisa
sobre células tronco.
As
amostras chegaram em 24 horas ao Brasil, com cinco quilos de gelo seco, o
suficiente para mantê-las congeladas por dois dias. Nove dias depois, as
células ainda não haviam sido liberadas e se encontravam detidas no Aeroporto
de Viracopos, em Campinas, interior de São Paulo. Como disse Pereira em seu
texto, "as preciosas células-tronco podem já ter virado mingau".
Entre os documentos solicitados pela Anvisa, havia um termo de responsabilidade
que deveria conter as assinaturas - neste caso, dela e do diretor do centro de
pesquisa - reconhecidas em cartório. Conseguiram reunir toda a documentação em
tempo e apresentá-la, mas o material não foi liberado.
Dia 14 de
dezembro a Anvisa lhe avisou que o material estava sendo enviado para a
Alfândega, órgão responsável a partir deste ponto. "E não é a primeira vez
que acontece", afirma a professora, "eu perco credibilidade quando
estrago o material, é um desperdício", lamenta, pela demora no processo.
No entanto, esta história teve um final feliz e em 27 de dezembro a
pesquisadora pôde aproveitar as células para suas pesquisas, pois sobreviveram
aos 13 dias de burocracia.
Em nota,
a Associação dos Notários e Registradores do Brasil, a Anoreg alega que "a
falta de exigência do reconhecimento de firma, por exemplo, abre brechas para
golpes, como utilização de documentos falsificados na abertura de empresas”. A
burocracia se justifica pela possibilidade do outro ser corrupto ou
estelionatário, mas quase nunca se explica que ocorre pela falta de segurança
dos próprios organismos públicos, que não têm outros mecanismos, além destes,
arcaicos, para evitar as fraudes. O cidadão demora para alugar um apartamento,
para abrir uma empresa, para se casar... porque ele tem que superar muitas
barreiras para conseguir determinada certidão ou documento legalizado, ou seja,
passos prévios a qualquer outra gestão que ele faça, ainda que o tempo gasto
com a burocracia varie a cada cidade, dependendo das facilidades criadas pelas
prefeituras e governos. Por último, poderíamos considerar que tudo isso ocorre
pela falta de credibilidade do próprio cidadão. "Os princípios da
veracidade e da boa fé inexistem nos órgãos públicos", defende Chiavassa.
A desconfiança gera mais mecanismos de controle, que prejudicam o cidadão de
bem.
O excesso
de exigências de documentos no Brasil é histórico, a ponto de o país ter tido
um ministério da Desburocratização, entre 1979 e 1986, que deram origem, por
exemplo, aos juizados de Pequenas Causas, que garantem soluções mais rápidas
para conflitos jurídicos de pequena monta.
De lá
para cá, a tecnologia também se tornou um aliado do Estado e do cidadão
brasileiro para reduzir as exigências de documentação. Em 1997, por exemplo, as
declarações de imposto de renda feitas anualmente já podiam ser realizadas pela
internet. A Polícia Federal, em muitos estados, permite ao cidadão agendar a
retirada de passaporte com um formulário online. E nos estados de São Paulo e
Minas Gerais existem órgãos públicos dedicados a centralizar os serviços
básicos de cidadania, trânsito e setores da prefeitura para os cidadãos, que
são o Poupatempo e o Minas Fácil, respectivamente, que também
permitem algumas consultas e agendamentos via web.