sábado, 5 de maio de 2018

O golpe dos cursos sobre o 'golpe'


Algumas universidades passaram a oferecer cursos que questionam a legitimidade do impeachment, em 2016, da então presidente da República, Dilma Rousseff. O assunto segue no noticiário na forma de matérias e artigos de opinião. Recentemente, chamou-me a atenção uma reportagem no site de O Globo (24/4) intitulada UFRJ oferece curso sobre 'o golpe de 2016 e o futuro da democracia'. UFRJ é a Universidade Federal do Rio de Janeiro.
A matéria traz um bom histórico do assunto. Em resumo, ele começou em fevereiro, quando a Universidade de Brasília (UnB) anunciou a criação de disciplina sobre "o golpe de 2016 e o futuro da democracia no Brasil". Na sequência, o Ministério da Educação acionou vários órgãos, entre eles a Advocacia-Geral da União e o Ministério Público Federal (MPF), para apurar eventual improbidade administrativa dos responsáveis pela disciplina.
Entendo que tal improbidade estaria na criação de um curso cujo título evidencia proselitismo político, numa universidade pública e com seus recursos. A iniciativa da UnB foi replicada noutras universidades, as estaduais de Campinas (SP) e da Paraíba, e as federais da Bahia, do Amazonas, de Goiás e do Ceará. Estes dois últimos casos também passaram a receber atenção do MPF.
Na UFRJ o curso, com título que repete o da UnB, surgiu no seu Instituto de Economia (IE), na forma de 11 seminários sobre o assunto em dias diferentes, todos ministrados por professores do instituto, exceto um. Pela primeira vez vi um instituto de economia tomando iniciativa semelhante à da UnB, o que me despertou interesse ainda maior, e formei minha opinião.
Entendo que o ambiente universitário deve pautar-se pelo pluralismo de opiniões, o que também atua como estímulo à busca do conhecimento. Nada teria contra debates, disciplinas, cursos e programas de seminários sobre o impeachment de Dilma desde que respeitado esse pluralismo. O título de um deles poderia ser, por exemplo, "O impeachment de Dilma foi golpe?". Esse ponto de interrogação vem sendo omitido, o que é um golpe contra o pluralismo que deve pautar as discussões nas universidades. 
"Certezas" desse tipo são comuns em universidades brasileiras, em particular nas públicas e nas ciências humanas. Há professores que ao lecionar pregam suas convicções ideológicas, tratando suas hipóteses como teses. E na pesquisa focam em evidências seletivas que sustentam tais hipóteses, havendo também "evidências" apenas discursivas. Vertente importante dessa pregação é conhecida como marxismo gramsciano. Não tenho espaço para descrevê-la aqui, mas quanto a isso o leitor poderá consultar texto muito esclarecedor de outro articulista desta página, Ricardo Vélez Rodríguez, da Universidade Federal de Juiz de Fora, em www.ecsbdefesa.com.br/fts/MGPFIREP.PDF. 
Diante do tema - e insisto, com ponto de interrogação - minha resposta seria não, fundamentada na análise dos fatos que sustentaram o impeachment e na pertinência do processo jurídico então seguido. Como economista, observei muito as questões de finanças públicas envolvidas no caso. Estão muito bem esclarecidas no parecer do senador Antonio Anastasia (PSDB-MG), documento que sustentou a decisão do Senado que afastou Dilma. Anastasia discutiu argumentos pró e contra no processo de que era o relator e o texto pode ser encontrado no Google digitando "impeachment Dilma parecer do senador Anastasia". A referência que virá em primeiro lugar remete ao site do Senado, que dá acesso ao documento, de 126 páginas. Sua leitura pode servir como terapia para quem fala em golpe.
Em resumo, o parecer conclui pela demissão de Dilma pelas seguintes e justas causas: "a) ofensa aos art. 85, VI e art. 167, V da Constituição Federal, e aos art. 10, item 4, e art. 11, item 2 da Lei no 1.079, de 1950 (a chamada Lei do Impeachment, acrescento), pela abertura de créditos suplementares sem autorização do Congresso Nacional; e b) ofensa aos art. 85, VI e art. 11, item 3 da Lei nº 1.079, de 1950, pela contratação ilegal de operações de crédito com instituição financeira controlada pela União".
Essas operações de crédito envolveram várias instituições, o BNDES, o Banco do Brasil e a Caixa Econômica Federal, e ficaram conhecidas como pedaladas fiscais. O parecer contém vários gráficos mostrando que no governo Dilma elas cresceram abruptamente nessas instituições. Da mesma forma caíram em dezembro de 2015, quando expressivo valor delas, R$ 56 bilhões (!), foi quitado pelo Tesouro Nacional, mas só depois de o Tribunal de Contas da União apontar que eram ilegais.
Uma decisão do Senado é sempre política, mas o impeachment seria improvável se Dilma não estivesse na situação vulnerável em que ficou por seus próprios atos. Punida por questões de finanças públicas federais, entrou na história pelo golpe com que prostrou o equilíbrio dessas finanças.
Voltando ao IE da UFRJ, ao buscar seu site no Google, ele é informado seguido da missão desse instituto: "O IE-UFRJ desenvolve atividades de ensino de graduação e pós-graduação, pesquisa e extensão na área de Economia. Seu principal compromisso é apresentar e discutir, de forma aprofundada e crítica, as principais vertentes do pensamento econômico, sempre cultivando a pluralidade de visões e abordagens." Muito bem!
Quem organizou o citado seminário talvez argumentasse, para justificar a ausência dessa pluralidade, que ele trata do pensamento político. Mas, aberto o site (www.ie.ufrj.br), logo no início é dito com destaque: "Singular porque plural" - sem nenhuma restrição.
Ignoro se o Instituto de Economia já organizou ou pretende realizar outros eventos sobre o assunto, em linha com sua missão pluralista. Se não, estaria em dívida com ela.
Roberto Macedo, em O Estado de São Paulo



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