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Cenas como esta mostram que a guerra dos ucranianos contra o invasor russo já tem um caráter insurrecional. Crédito, Alejandro Martinez/Anadolu agency via Getty images |
O presidente da
Ucrânia, Volodymyr Zelensky, conclama compatriotas a resistir à invasão russa
até o autossacrifício. O ex-presidente Petro Poroshenko empunha, em entrevista
de TV, um fuzil AK-47. Uma fábrica de cerveja anuncia que migrou da produção de
bebidas para a de coquetéis molotov. Um morador de Lviv mostra uma
submetralhadora e diz que é adequada para o combate casa a casa. O
autoproclamado porta-voz de um certo Movimento de Resistência Ucrânia Livre diz
contar com cerca de mil guerrilheiros camuflados "atrás das linhas
inimigas" - em Mariupol, Sumy, Kharkiv e Irpin.
Essas e outras cenas,
exibidas ou descritas pela imprensa nos últimos 18 dias, sugerem que a guerra
dos ucranianos contra o invasor russo já tem um caráter insurrecional,
irregular ou de guerrilha.
Nesse terreno, a Ucrânia tem
uma longa história que remonta à Idade Média. Resta saber se a tradição tem
chances de reviver no século 21.
Com um território composto
de partes de grandes impérios do passado, a Ucrânia cultua hoje tanto heróis e
mártires derrotados - quando ucranianos tentaram obter independência e foram
massacrados - quanto chefes vitoriosos da resistência a Napoleão e da Segunda
Guerra Mundial.
Nas galerias de honra de
museus e memoriais, soldados profissionais figuram lado a lado com
guerrilheiros - homens e mulheres - que nunca pisaram em academias militares.
Esse passado é visto por
alguns como um indício de que a invasão determinada pelo presidente russo,
Vladimir Putin, terá o mesmo destino de campanhas como as ocupações soviética e
norte-americana no Afeganistão e norte-americana no Iraque: exuberantes
operações militares incapazes de vencer inimigos fracos, mas flexíveis e com
moral elevada.
Um dia depois de os tanques
russos cruzarem a fronteira, o especialista em inteligência Douglas London
escreveu na revista Foreign Affairs que a estratégia ucraniana "não
depende de repelir uma invasão russa, mas sim em fazer Moscou sangrar a ponto
de tornar a ocupação insustentável".
A doutora em Estudos
Estratégicos Internacionais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul
(UFRGS) Tamiris Pereira dos Santos diz que a estratégia de sangria
(bloodletting, em inglês) foi adotada de forma consciente pela Ucrânia, mas
deve ser vista com cautela.
"A questão é: se formos
pensar em sangria nesse caso, o quanto a Ucrânia é capaz de impingi-la à
Rússia? São capacidades bastante assimétricas postas em jogo para que essa
premissa seja, de fato, válida", afirma.
"Naquele caso, os
norte-americanos não conseguiram efetivamente uma vitória em razão da
capacidade insurgente da região, que se infiltrou entre a população iraquiana e
causou bastante desgaste aos Estados Unidos", argumenta.
A pesquisadora da Rede de
Ciência, Tecnologia e Inovação e Defesa do Ministério da Defesa e da
Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal Técnico de Ensino Superior (Capes)
Ana Carolina de Oliveira Assis afirma que o emprego de táticas insurgentes pela
Ucrânia foi perceptível desde o primeiro momento.
"Com o passar do tempo
e o avanço russo, somados à falta de apoio de tropas ocidentais, é de se
esperar que a Ucrânia utilize todos os meios possíveis para resistir e adote
cada vez mais táticas insurgentes", afirma a especialista e doutoranda em
Ciência Política pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).
Nas ciências militares, o emprego
de engajamento de civis, franco-atiradores, emboscadas e sabotagem é chamado de
guerra irregular - em oposição à guerra regular, na qual são utilizados
pessoal, equipamentos e formas de atuação profissionais.
A guerra irregular pode ser
o único meio disponível num conflito de independência ou libertação nacional,
quando populações numerosas e sem forças armadas precisam enfrentar um ocupante
poderoso.
Pode, também, ser utilizada
de forma acessória ou complementar por um exército regular - a fim de executar
ações de retaguarda, surpreendendo o inimigo, ou em áreas inóspitas ou
densamente povoadas que dificultem o uso de blindados ou de aviação.
Esse último caso é o da
Ucrânia, que conta com forças armadas expressivas, mas com poder de fogo 10
vezes inferior ao da Rússia.
"Uma das principais
características da guerra irregular é a importância da opinião pública. Uma vez
que o país dito mais fraco não teria como vencer o poderio militar do inimigo,
a opinião popular torna-se o principal alvo", afirma Maria Eduarda
Dourado, mestre em Relações Internacionais pela Universidade Estadual da
Paraíba.
O objetivo da guerra
irregular, segundo a pesquisadora, é minar a aspiração do país inimigo à
legitimidade de suas ações.
"Ao dizer que há civis
ucranianos dispostos a perder a vida utilizando apenas coquetéis molotov em
combate direto com soldados e tanques russos, Zelensky reforça a narrativa
ucraniana e constrói uma imagem negativa da Rússia e de seu líder, Vladimir
Putin", complementa Maria Eduarda.
Os números avassaladores da
invasão russa - o governo dos Estados Unidos estimava que a Rússia tinha
posicionado 150 mil a 190 mil soldados na fronteira antes de 24 de fevereiro,
quando se iniciou o ataque - sugerem que Moscou acreditava que alcançaria seus
objetivos de forma fulminante, anulando a capacidade de reação do inimigo.
"Guerra é algo
politicamente impopular. Putin estava mirando uma conquista veloz dos
principais pontos estratégicos do território ucraniano", afirma Maria
Eduarda.
A realidade, porém, assumiu
contornos muito distintos.
"Ao contrário do que
era esperado, Putin viu uma parte da Ucrânia resistir fortemente, em especial a
parte ocidental, onde há maior identificação com os países e a cultura
ocidental", analisa.
O planejamento de uma
campanha como a da Rússia na Ucrânia inclui cenários variados, e é provável que
as forças armadas russas tenham considerado a perspectiva de enfrentar
resistência popular.
Não há, porém, garantia de
que essa presciência seja o caminho para o sucesso.
"Considerar a
possibilidade de insurgência não elimina as dificuldades que a Rússia pode
encontrar ao utilizar táticas e equipamentos de contra-insurgência. Além das
questões logísticas, o problema de diferenciar civis e militares, outro
obstáculo seria o apoio ocidental à resistência ucraniana", considera Ana
Carolina.
Esse apoio, explica a
pesquisadora, seria uma fonte importante de recursos e armamentos e levaria a
um prolongamento da resistência e um enfraquecimento militar e político russo
com o passar do tempo.
No domingo (13/3), mísseis
russos atingiram uma base militar ucraniana em Starychi, distante 46
quilômetros de Lviv e a cerca de 25 quilômetros da fronteira com a Polônia,
segundo a administração regional militar de Lviv.
É o ataque mais próximo do
território de um país da Otan desde o início da campanha.
Essa vizinhança não é o
único fator a servir de complicador na equação da guerra.
"Como o Ocidente não
está intervindo diretamente com soldados e armamentos, apenas doando material
bélico, dinheiro e outros recursos para a Ucrânia, aumenta a probabilidade de o
conflito evoluir para uma guerra de insurgência, com os ucranianos utilizando
todos os meios ao seu alcance para manter a atual posição", afirma Ana
Carolina.
Tamiris considera que
escalar a guerra ou participar diretamente do conflito não seja uma estratégia
do Ocidente, condição que aumenta as chances de a Ucrânia recorrer à
insurgência.
"No caso de
participação mais efetiva dos Estados Unidos e da Europa ocidental, existe a
possibilidade de a China vir em socorro da Rússia. Um envolvimento ocidental
direto poderia, de fato, causar a eclosão de uma guerra mundial - algo que,
acredito, não se queira repetir tão cedo", conclui.
Luiz Antônio Araujo, BBC
News
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