Produção de cacau no sistema tradicional de cabruca, na Bahia, em que os cacaueiros são cultivados à sombra de árvores maiores
O risco de que a
guerra entre Rússia e Ucrânia reduza a oferta de fertilizantes para a
agricultura brasileira vem gerando temores sobre a produção de alimentos no
país.
Para uma corrente de
pesquisadores e agricultores, porém, a crise é uma oportunidade para a expansão
de técnicas capazes de reduzir, substituir ou até mesmo eliminar o uso de
adubos químicos nas lavouras.
Qual a dependência do Brasil
dos fertilizantes da Rússia, argumento de Bolsonaro por neutralidade na guerra?
Vários desses métodos já são
praticados no país - alguns deles, há vários séculos. Outros têm avançado
inclusive entre expoentes do agronegócio, que buscam cortar custos e
diversificar a produção.
'Agriculturas invisíveis'
Para o engenheiro agrônomo
Walter Steenbock, doutor em recursos genéticos vegetais pela Universidade
Federal de Santa Catarina (UFSC), as incertezas quanto à oferta de
fertilizantes jogam luz sobre práticas agrícolas "que não necessitam de
tantos insumos ou dispensam insumos, e que estão presentes na agricultura
familiar e em comunidades tradicionais".
No livro "A Arte de
Guardar o Sol - Padrões da Natureza na reconexão entre florestas, cultivos e
gentes" (ed. Bambual), lançado em 2021, Steenbock lista várias dessas
práticas.
Uma delas é o faxinal,
sistema presente no Paraná em que animais (principalmente porcos) são criados
em meio à floresta de araucárias, alimentando-se do pinhão e de outros frutos
nativos.
Outro é a cabruca, na Bahia,
na qual a mata é raleada para o cultivo de cacau em meio a outras árvores, em
condições mais próximas ao ambiente original da espécie.
Ele afirma que, embora sejam
comprovadamente eficientes, muitas dessas práticas ainda não são reconhecidas
pela agronomia tradicional como agriculturas - por isso ele as chama de
"agriculturas invisíveis".
Outros desses métodos são
vistos como "atrasados", diz Steenbock. É o caso da coivara, técnica
amplamente difundida entre comunidades rurais e indígenas brasileiras, na qual
abrem-se clareiras na mata com auxílio do fogo e se cultivam espécies perenes
como a mandioca, a batata-doce e o inhame.
As roças são depois
abandonadas até que a floresta se regenere, enquanto uma nova clareira é aberta
em outro lugar.
Steenbock diz que, em comum,
essas técnicas usam a "diversidade e a abundância da biomassa vegetal como
base para a fertilidade do sistema produtivo".
Ainda que
"invisíveis", as técnicas têm permitido que muitos agricultores
brasileiros produzam alimentos sem recorrer a adubos químicos, afirma o
agrônomo.
Além disso, diz ele,
conceitos presentes nessas agriculturas têm sido adotados inclusive por alguns
setores do agronegócio, reduzindo impactos ambientais e permitindo ganhos de
produtividade.
É o caso, por exemplo, da
chamada Integração Lavoura-Pecuária (ILP), na qual culturas como soja e milho
são consorciadas com pastagens e, em certos casos, com linhas de árvores.
De 2005 a 2021, segundo a
Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária), a área onde a ILP é
praticada passou de 2 milhões de hectares para 17,4 milhões.
Outro exemplo são as
técnicas agroflorestais incorporadas por grandes empresas como o Grupo Pão de
Açúcar (no cultivo de alimentos orgânicos) e a fabricante de pneus Michelin (na
produção de borracha a partir de seringueiras).
Agricultura familiar
Dados do último Censo
Agropecuário, divulgado em 2017 pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística), indicam que uma eventual redução na oferta de fertilizantes teria
impactos bastante desiguais nas diferentes formas de agricultura praticadas no
país.
Segundo o Censo, 70% dos
estabelecimentos rurais brasileiros não usam fertilizantes químicos. O número é
puxado pela agricultura familiar, que responde por 77% dos estabelecimentos
rurais no país e é composta por pequenas propriedades.
Nessas unidades, 69,1% dos
agricultores relataram não usar adubos químicos, e 11,7% disseram usar só
adubos orgânicos.
Embora ocupe só 23% da área
agrícola do país, a agricultura familiar tem participação significativa na
produção de alimentos que vão para a mesa dos brasileiros, segundo o IBGE.
O segmento responde, por
exemplo, por 48% do valor da produção de café e banana, 80% do valor de
produção da mandioca, 69% do abacaxi e 42% do feijão.
Por outro lado,
fertilizantes químicos são um dos pilares da produção em larga escala de
commodities agrícolas como soja, milho, cana-de-açúcar e algodão - produtos que
respondem pela maior parte do valor da produção vegetal no país.
Em entrevista recente à BBC,
o pesquisador da Embrapa Solos José Carlos Polidoro afirmou que essas quatro
culturas respondem por 90% dos fertilizantes consumidos no Brasil.
O uso de fertilizantes
cresceu no país com a chegada da chamada Revolução Verde - um conjunto de
técnicas agrícolas desenvolvidas nos EUA e na Europa a partir dos anos 1930 e
hoje presentes no mundo todo.
Uma das principais técnicas
difundidas foi o uso de fertilizantes químicos, extraídos principalmente por
mineração e processados por indústrias.
Os três principais são o
nitrogênio (N), o fósforo (P) e o potássio (K), também chamados de NPK,
conforme suas iniciais na tabela periódica.
Para os adeptos da Revolução
Verde, corrente hoje majoritária nas faculdades de Agronomia do país, os solos
brasileiros são naturalmente pobres em nutrientes e precisam de fertilizantes
para produzir de forma satisfatória.
Na entrevista à BBC, José
Carlos Polidoro, da Embrapa, afirmou que esse é o caso especialmente do
Cerrado, "onde estão nossos melhores solos para agricultura — (eles) têm
muita água, são solos profundos, planos, mas têm essa limitação natural de
nutrientes, que é algo próprio da natureza tropical".
Com o conflito entre Rússia
e Ucrânia, porém, o fornecimento de fertilizantes ao Brasil se tornou incerto.
Responsável por 23% das
importações brasileiras de adubos químicos, a Rússia orientou suas empresas a
suspender as exportações dos itens após sofrer uma série de sanções
internacionais.
A instabilidade jogou os
preços dos produtos para os valores mais altos da história e estimulou o
governo brasileiro a buscar outros países que possam ampliar as vendas ao
Brasil no curto prazo.
Em outra frente, o governo
anunciou um plano para reduzir de 85% para 60% a fatia ocupada por
fertilizantes importados no país nos próximos 30 anos.
O plano tem como principal
objetivo ampliar a produção de fertilizantes no Brasil e inclui o Projeto de
Lei 191/20, que autorizaria a mineração em terras indígenas.
'Recursos finitos'
A iniciativa do governo foi
elogiada por entidades do agronegócio, mas duramente criticada pela Associação
Brasileira de Agroecologia (ABA).
Em nota, a associação diz
que o aumento da produção de fertilizantes no Brasil não resolveria o que ela
considera um problema central desse modelo de agricultura: sua dependência por
recursos naturais finitos.
A ABA cita estimativas de
que nos próximos 50 a 100 anos as reservas mundiais de fósforo se esgotarão ou
terão custos de exploração inviáveis.
Agricultor em agrofloresta
Afirma ainda que os
fertilizantes nitrogenados são produzidos industrialmente com o uso de gás
natural ou nafta, combustíveis fósseis associados ao aquecimento global.
"Se este modelo
agrícola não garante condições de existência para as gerações futuras, ele não
é sustentável", diz a associação.
Solos pobres?
Ex-presidente da ABA e
professora aposentada do Departamento de Solos da Universidade Federal de
Viçosa, a agrônoma Irene Maria Cardoso afirma à BBC que é plenamente possível
produzir alimentos no Brasil sem recorrer a fertilizantes químicos.
Para isso, diz ela, primeiro
se deve combater a noção de que os solos brasileiros são pobres.
"Se você analisar os 20
primeiros centímetros de solo, a quantidade de nutrientes disponíveis é pouca.
Acontece que nossos solos são muito profundos, então os nutrientes estão lá,
mas estão dispersos", afirma.
Essa característica, diz
ela, não impede que esses solos sejam cultivados nem produzam alimentos em
abundância. Basta que nele se preservem suas condições naturais, como a
existência de árvores com raízes extensas, que acessem os nutrientes nas
profundezas e os levem para suas folhas e galhos.
Assim, quando essas plantas
soltarem folhas ou forem podadas, os nutrientes voltarão à superfície do solo,
podendo ser absorvidos por espécies com raízes mais curtas que o agricultor
deseje cultivar em meio às árvores.
O funcionamento do sistema
também exige que a atividade biológica do solo seja intensa. Afinal, segundo
Cardoso, são microorganismos que vivem no solo - como bactérias e fungos - os
principais responsáveis por reciclar a matéria orgânica, garantindo que as
plantas obtenham os nutrientes de que precisam.
A agrônoma afirma que esses
seres e suas complexas interações permitiram o surgimento de alguns dos
ecossistemas mais ricos do globo, como a Amazônia e o Cerrado, em solos que a
agronomia tradicional considera pobres.
Mas ela diz que o sistema
entra em colapso quando o solo é transformado por técnicas agrícolas modernas,
como o revolvimento por máquinas pesadas, o uso de agrotóxicos e o monocultivo.
As novas condições
prejudicam a atividade biológica: revirado, o solo fica ressecado e compactado.
Com a remoção de árvores, cai a quantidade de matéria orgânica para alimentar
os microorganismos.
E, com a destruição de
plantas vistas como "daninhas", o solo fica exposto a ventos e
chuvas.
As plantas passam então a
precisar de "suplementos" que reponham os nutrientes absorvidos pela
safra anterior ou perdidos pela erosão.
Transição gradual
Para Cardoso, há formas de
suavizar a transição para outro modelo agrícola, substituindo gradualmente
fertilizantes químicos por adubos orgânicos.
Ela defende que resíduos
domésticos produzidos nas cidades, como restos de alimentos e árvores podadas,
sejam direcionados para a agricultura.
Diz ainda que subprodutos da
construção civil, como pós de rochas gerados pela extração de granito ou
gnaisse, têm nutrientes valiosos e já são usados com bons resultados por muitos
agricultores.
"Não trabalhamos com
ideia de romper com esse modelo de um dia pro outro. O importante é que as
coisas caminhem na direção correta", afirma Cardoso.
Para a Confederação da
Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), porém, o Brasil não tem como abrir mão
dos fertilizantes químicos nem substituí-los por outros produtos no curto
prazo.
Em entrevista à BBC, o
diretor técnico adjunto da entidade, Reginaldo Minaré, diz que a busca por
fontes alternativas aos fertilizantes químicos é bem-vinda.
Afirma ainda que a produção
de fertilizantes orgânicos - como estercos e compostos - pode ser ampliada no
país, "mas não tem a escala do que seria preciso para resolver a safra do
final do ano".
Além disso, ele afirma que
essas alternativas precisam ser "economicamente viáveis".
"Precisamos de uma
abordagem profissional até chegarmos em uma modelagem que permita a produção
desses itens em grande escala e que não encareça os alimentos", diz
Minaré.
O diretor da CNA cita
técnicas que já vêm sendo adotadas nos últimos anos por setores do agronegócio
para proteger a vida nos solos e reduzir a necessidade de fertilizantes.
Uma delas é o chamado
plantio direto, na qual as sementes são plantadas sobre a palha da safra
anterior. O método, bastante difundido entre produtores de soja, evita que os
solos fiquem expostos entre a colheita e a semeadura, além de ampliar a
quantidade de matéria orgânica disponível.
Outra tecnologia adotada por
sojicultores é a inoculação de bactérias capazes de fixar o nitrogênio do ar no
solo. Segundo a Embrapa, a técnica permite ao Brasil economizar cerca de US$ 8
bilhões ao ano nas compras de fertilizantes nitrogenados.
Minaré diz, porém, que a
mudança do "modelo agrícola de base química para um modelo de base
biológica" não é simples e leva tempo.
Ele afirma que o modelo de
base química foi desenvolvido ao longo de quase cem anos no Hemisfério Norte e
que o Brasil levou décadas para adaptá-lo às condições do país.
"Foi esse conjunto de
ferramentas que permitiu não só à agricultura brasileira, mas à agricultura
mundial, chegar onde chegou", afirma.
Uma mudança nessa matriz,
segundo Minaré, exigirá tempo semelhante ao que se usou para construir a matriz
de base química - além de muito investimento em pesquisa.
Walter Steenbock, o agrônomo
entusiasta das "agriculturas invisíveis" de indígenas e comunidades
rurais, concorda com a importância de investir em pesquisa, mas diz que o país
caminha a passos lentos.
"Precisamos de
professores que ensinem a fazer agrofloresta nas universidades", defende o
agrônomo, que também cobra mais políticas de crédito para o setor e maior
abertura de órgãos que assessoram agricultores às práticas agroecológicas.
"É uma eutanásia
continuar buscando gás do outro lado do mundo para produzir alimentos. Se não
pararmos por causa da guerra, teremos que parar por outro motivo", afirma.
João Fellet, BBC News
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