Uma entrevista de três anos atrás que vale a pena reler...
O INVESTIDOR-ANJO
BAYBARS ALTUNTAS TEM CONEXÕES NOS ECOSSISTEMAS DE INOVAÇÃO DA ÁSIA, DA EUROPA E
DOS ESTADOS UNIDOS - E ENXERGA NO HORIZONTE VARIAS TENDÊNCIAS E UMA GRANDE
AMEAÇA PARA A INOVAÇÃO
O MUNDO TEM
PELA frente uma crise econômica diferente de todas as outras — e isso vai mudar
as relações entre grandes empresas, startups, investidores e governos. Baybars
Altuntas, investidor e empreendedor turco de 51 anos, está bem posicionado para
fazer algumas previsões a respeito. Ele é presidente do Fórum Global de
Investimentos de Anjos dos Negócios (WBAF), em Istambul, e ocupa cargos-chave
numa grande organização de anjos americana (GBAN, em Washington) e outra
europeia (EBAN, em Bruxelas). Acredita que a pandemia vai ter impacto
cataclísmico e duradouro. Ao longo da entrevista que deu a Época NEGÓCIOS,
tratou o coronavirus por "senhor" e por "sultão”, em referência
a Mehmed 11, que marcou o início da Idade Moderna no conquistar Istambul.
Baybars alerta que o "sultão coronavírus", ao conquistar o mundo,
deve encerrar a era em que falávamos muito mas avançávamos devagar rumo à
digitalização dos serviços essenciais e à cobertura global de internet. Na era
que se inicia, esses avanços fazem diferença entre vida e morte. O
“sultão" também ameaça frear o ritmo da inovação em geral, por empobrecer
populações inteiras, derrubar a demanda e mudar prioridades. Ao mesmo tempo,
deve conferir nova relevância às startups sobreviventes, por causa da capacidade
dessas empresas de criar bons novos empregos. A pandemia deve ainda atrair para
o universo das startups uma onda de investidores vindos de negócios
tradicionais. Baybars é expansivo e bem-humorado, diferente da persona
televisiva que exibia como jurado no programa de TV Toca do Dragão, a versão
turca de Shark Tank. Ele continua ativo no setor: em 2020, pela primeira vez, o
WBAF lançou um fundo próprio e levantou US$ 10 milhões para investir em
startups e scaleups.
ÉPOCA NEGÓCIOS Em 2019, a WBAF projetava que o volume de investimentos feitos
por anjos iria quintuplicar em cinco anos e chegar a US$ 250 bilhões em 2024. A
crise deve ter mudado isso. Qual é a projeção agora?BAYBARS ALTUNTAS Não temos
ainda uma nova projeção. Mas o senhor coronavírus traz novidades para a
economia. Tive, em 21 de maio, uma conversa com JF Gauthier, CEO da consultoria
Startup Genonte, e Matthew Gamser, do Banco Mundial [CEO do Fórum de Finanças
de Pequenas e Médias Empresas do IFC, braço do Banco Mundial para empréstimos
ao setor privado]. Tratamos de como a crise afeta as finanças no mundo das
startups. Sai do encontro com a perspectiva de pelo menos dois grandes fatores
de transformação. O primeiro é muito favorável às empresas jovens e inovadoras.
A minha previsão é que as startups vão receber mais investimentos dos donos de
negócios tradicionais. Por quê? Porque eles vão começar a perceber mais
oportunidades no mundo das startups. Vão perceber que, depois da pandemia, a
digitalização vai se tornar ainda mais importante. Negócios tradicionais vão
perder mercado, e a demanda vai se dirigir aos negócios digitais. Então, um
jeito mais direto de fazer negócios no mundo pós-pandemia vai ser descobrir
startups e investir nelas. Novos investidores vindo para o mundo das startups
provocam outros efeitos. O valor de mercado dos negócios tradicionais vai cair
e o das startups vai aumentar.
NEGÓCIOS Já existe algum sinal dessa mudança?BAYBARS Tive ontem uma reunião com
o presidente da Associação de Investidores Anjos dos Emirados Árabes — aliás, estou
fazendo cinco reuniões por dia, porque ficou muito fácil. O mundo está tão
conectado, num momento estou em Dubai, no momento seguinte estou em São Paulo.
Ele contou o que ocorreu na Associação de Investidores Anjos de Abu Dabi
[capital dos Emirados Árabes]: em pouco tempo, apareceram 21 novos associados
que eram donos de negócios tradicionais e agora querem investir em startups.
Não são executivos — são os donos de agências de viagens, construtoras,
corretoras imobiliárias. São grandes homens de negócios que agora precisam de
um treinamento, de educação, porque não conhecem o mundo das pequenas empresas
inovadoras. Discutimos isso ontem mesmo na reunião do conselho do WBAF. O
dinheiro vai migrar dos negócios tradicionais para os novos negócios. Isso vai
criar oportunidades, porque startups são grandes criadoras de empregos novos.
NEGÓCIOS Você havia falado sobre dois grandes fatores de transformação. Qual é
o segundo?BAYBARS O segundo fator transformador, na minha avaliação, é o
seguinte: esses novos investidores-anjo têm cabeça de empreendedor. Sabem criar
e estabelecer negócios, expandir uma companhia a partir do início, adotar
sistemas de franquias quando é o caso, tudo isso. Junto com o dinheiro, vão
trazer uma grande carga de conhecimento, preciosa para as startups. Se você
checar, vai ver que grande pane dos investidores de startups, atualmente, vem
da carreira executiva, e não do empreendedorismo. São executivos, muitos deles
aposentados. Também têm conhecimentos importantes a oferecer, podem ser grandes
memores, têm ótimas redes de contatos, sabem dirigir uma empresa de maneira
profissional. Mas não sabem como estabelecer um negócio no inicio. Agora, mais
gente com cabeça empreendedora está vindo alimentar o ecossistema, e isso é
ótimo. Todos os negócios, mesmo as companhias globais, vão precisar passar por
transformação, e essa transformação vai colocar em destaque quem tem o know-how
para conduzi-la.
NEGÓCIOS A pandemia já está causando muito estrago. Quais setores vão ser os
maiores perdedores?BAYBARS Os novos investidores não vão colocar dinheiro em
todo tipo de startup. Passamos os últimos três anos falando sobre a importância
da economia do compartilhamento. Ouvi em muitos encontros e conferências
investidores falando sobre as grandes oportunidades em compartilhamento de
automóveis, imóveis e outros bens. Mas agora, o senhor coronavírus mudou o
jogo. Não posso convidar investidores para colocar seu dinheiro nessas
companhias. Infelizmente, a economia do compartilhamento será a grande perdedora
nos próximos três anos. A oportunidade de negócio no setor de compartilhamento
de automóveis terminou. Em maio, vi a noticia que uma fabricante de automóveis,
nos próximos três anos, vai dar prioridade aos modelos pequenos, porque ninguém
vai querer dividir automóvel. As fabricantes de automóveis ainda vão ter muito
o que fazer. Ao mudar o modelo de produção, as companhias vão mudar também a
lógica das áreas de corporate venture. Vai ser um segmento ainda mais
importante, porque leva as startups mais inteligentes para dentro das grandes
companhias e as empurra para a frente, as obriga a inovar.
NEGÓCIOS Quem mais vai perder? BAYBARS Tenho uma grande questão para o
mundo inteiro. O senhor coronavírus conseguiu paralisar quase tudo no mundo.
Vai conseguir interromper também a inovação? Executivos, empreendedores,
políticos e gestores públicos no mundo inteiro deveriam estar pensando nisso.
Acho possível que a pandemia paralise a inovação. A inovação depende das
finanças. Se você não pode financiar pesquisa e desenvolvimento, se não
pode financiar as idéias dos empreendedores mais inteligentes e transformá-las
em negócios, a inovação não vai acontecer. Além disso, muitas das inovações
dependem de demanda. Com a covid-19, o consumidor vai ter menos dinheiro, a demanda
vai cair. Não vamos mais ter aquele cenário em que uma invenção chega ao
mercado e o consumidor está pronto para comprar. O empreendedor vai precisar de
um conjunto de habilidades para levar um novo serviço ao mercado e conseguir
vender. As pequenas e médias empresas [PMEs], negócios tradicionais que
respondem por cerca de 96% da economia mundial, vão sofrer mais. Já as
startups, negócios nascidos no novo milênio, conseguem transformar seus
negócios mais rapidamente do que empresas tradicionais.
NEGÓCIOS Quais setores ou modelos de negócios devem ganhar destaque por causa
da pandemia?BAYBARS Estamos conversando pelo Zoom. O Zoom e companhias
similares já estão entre os vencedores na pandemia. Pense também na educação.
Todos os governos e escolas pensam, neste momento, em como levar o ensino para
o meio digital. É uma mudança importante para a qual a América Latina deve
ficar atenta. As edtechs, startups de educação, vão pegar uma fatia maior dos
investimentos. Vão pegar uma fatia maior do dinheiro que já procura destino,
cerca de US$ 50 bilhões por ano, e também do dinheiro novo que vai vir das
companhias tradicionais para as startups. Quando o investimento inteligente dos
anjos [N.R.: Baybars define “investimento inteligente" como a combinação de
dinheiro, conhecimento, mentoria e rede de contatos que os anjos carregam
consigo], em busca de novidades, chegar às tecnologias de educação, vai ser
seguido por bancos e operadoras de telecomunicações, que vão entrar no jogo de
maneira mais intensa. A cobertura e a velocidade de internet são fatores
cruciais numa boa educação digital. Acredito que a chegada das redes 5G vai
acontecer antes do que esperávamos. E assim que isso acontecer, vamos começar a
nos concentrar nas redes 6G. Companhias de telecomunicações vão passar a ter
uma responsabilidade social muito maior de levar conexão a todo lugar do mundo
— vai ficar claro que qualquer pessoa, mesmo que more na montanha mais isolada,
pode ter acesso a boa educação. Há muitos anos falamos sobre como levar oportunidades
para todos, em todos os lugares. A hora chegou. Governo e formuladores de
políticas públicas precisam abrir caminho para empresas do setor. Se a pandemia
tivesse visitado o mundo nos anos 80, sofreríamos com outra realidade. Não
teríamos como ministrar aulas à distância para nossas crianças. Parece que a
covid-19 nos visitou no momento em que temos as tecnologias para lidar com ela.
Hoje, a doença tem o poder de acelerar transformações que estavam prestes a
acontecer.
NEGÓCIOS Por que você acha que especificamente os bancos vão entrar nessa
expansão, junto com as operadoras de telecomunicações?BAYBARS Mencionei também
os bancas porque a expansão da internet vai provocar uma nova onda de inclusão
financeira e oportunidades para fintechs. Essa é uma causa importante para o
WBAF. A entidade é o oitavo parceiro global da iniciativa do G20 para a
inclusão financeira, o GPFI [Parceria Global para a Inclusão Financeira],
presidido pela Rainha Máxima, dos Países Baixos. Sou conselheiro do GPFI. Nossa
maior preocupação é que há 2 bilhões de pessoas no mundo sem acesso a bancos.
Num cenário em que governos precisam dar ajuda financeira a grande parte da
população, como ocorre agora nos EUA. no Reino Unido e em outros países, como o
dinheiro chega a pessoas sem acesso a serviços financeiros? Inclusão financeira
vai ser um tema ainda mais importante após a pandemia, e as fintechs vão
desempenhar um papel crucial na mudança. Vão diminuir o custo dos serviços e
aumentar a mobilidade dos ativos das pessoas — se tivermos boa conexão de
internet em todos os lugares.
NEGÓCIOS Por causa da preocupação global com saúde pública, você vê novas
oportunidades também em biotecnologia?BAYBARS No ecossistema de startups,
fala-se muito agora nas healthtechs. Na Europa, até agora. 20% do dinheiro
investido por anjos ia para healthtechs. Tenho a impressão que esta parcela vai
aumentar. Então, sim, na nova era pós-covid-19 há uma grande oportunidade em
saúde. Os atores se movem nessa direção. Mas note que muitos dos investimentos
em saúde têm dinâmica diferente de investir em outras tecnologias — é mais
custoso e o retorno, mais demorado. Para manter esse impulso, os governos
precisam compartilhar o risco e investir mais em tecnologias de saúde. É bom
negócio para os governos também, porque eles precisam dos investidores
colocando dinheiro nas startups. Quando falamos em investimento de impacto,
pensamos em três áreas principais de atuação: educação, saúde e economia limpa.
Dessas três, tenho a impressão que saúde veio para a frente do palco, neste
momento.
NEGÓCIOS Não estamos superestimando o efeito transformador do coronavírus apôs
a pandemia?BAYBARS Já ouvi dizer que todo o coronavírus causador de covid-19
presente no mundo inteiro pesa um grama. É a substância mais poderosa do mundo.
Esse um grama já movimentou US$ 10 trilhões. São US$ 2 trilhões nos Estados
Unidos, US$ 1.5 trilhão na Europa, US$ 1 trilhão prometido pelo FMI aos
países-membros... Há pacotes de ajuda pelo mundo inteiro, e eles ainda vão
aumentar. Se nos falarmos de novo daqui a algum tempo, podem ser US$ 15
trilhões. Estamos falando dos impactos de uma nova era provocada por esse
vírus. É a primeira vez na história da humanidade que o petróleo tem
preço negativo. Em abril, passei a chamar o vírus de sultão coronavírus. No
século 15, o sultão Mehmed II conquistou Istambul [então chamada no Ocidente de
Constantinopla], encerrou a Idade Média e iniciou a Idade Moderna. Mas Mehmed
II conquistou apenas Istambul, e o coronavírus conquistou o mundo inteiro. Mas
não sei ainda como vamos chamar essa nova era.
NEGÓCIOS O WBAF afirma que os anjos têm um papel de promover justiça social.
Por quê?BAYBARS Buscar justiça social e equilíbrio de gênero no ecossistema de
inovação são papeis-chave do WBAF. Investidores-anjos e startups, juntos, criam
inovação e valor. Ao mesmo tempo, tem de dar um retorno para a sociedade e
compartilhar conhecimento. A justiça social vai melhorar se mais pessoas forem
incluídas na economia, se houver mais oportunidades de bons trabalhos. Se a
diferença entre ricos e pobres continuar a crescer e crescer, isso vai trazer
resultados ruins para toda a sociedade. Por isso, justiça social está na nossa
agenda. Espero que ocorra a menor perda de empregos possível com a covid-19,
mas os números são ruins. Lidar com desemprego causado pela pandemia vai ser o
maior desafio dos governos e das sociedades. As startups sempre criam novos
empregos. Tudo que der apoio ao ecossistema de startups será também apoio à
criação de empregos melhores. Novos empregos trazem mais justiça social.
NEGÓCIOS Por que buscar o equilíbrio de gênero é outro papel do
WBAF? BAYBARS Para o equilíbrio degenero vale o mesmo. Aumentar o número
de mulheres nos negócios é muito importante agora. Temos um Comitê Global de
Mulheres Lideres, muito ativo, e a presidente é Swati Mandela. A covid-19 pode
acabar tendo alguns efeitos positivos — provocar uma nova atitude mental, um
novo jeito de viver. Os adolescentes que estão confinados em casa, nossas
filhas e filhos, vão abrir os olhos para um mercado de trabalho completamente
diferente. Espero que os homens tenham aprendido a se comportar de forma mais
igualitária, depois de ficar confinados em casa com as mulheres por causa da
pandemia.
Por MARCOS
CORONATO, na Revista Época
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