Darcy Ribeiro dedicou boa parte da sua vida aos povos indígenas — Foto: Fundação Darcy Ribeiro (Fundar) |
Trajetória do antropólogo, etimólogo, educador, escritor e político, um dos maiores intelectuais brasileiros do século 20
"Fracassei
em tudo o que tentei na vida. Tentei alfabetizar as crianças brasileiras, não
consegui. Tentei salvar os índios, não consegui. Tentei fazer uma universidade
séria e fracassei. Tentei fazer o Brasil desenvolver-se autonomamente e fracassei.
Mas os fracassos são minhas vitórias. Eu detestaria estar no lugar de quem me
venceu."
Esse trecho do
discurso que o antropólogo, etimólogo, educador, escritor e político Darcy
Ribeiro (1922-1997) proferiu na Universidade Sorbonne, em Paris, quando recebeu
o título de Doutor Honoris Causa, resume a singular e brilhante carreira do
intelectual mineiro que não ficou circunscrito aos limites da academia.
Sua vida e obra são celebradas e relembradas dada a importância de seu legado.
Ele mesmo
costumava dizer que era um homem com muitas vidas. Suas expedições acabaram
virando livros e filmes, e são vistas hoje por acadêmicos e por seus seguidores
como uma das etapas "visionárias" na sua trajetória.
"Visionário"
foi a definição citada tanto pelo indigenista Toni Lotar, conselheiro da
Fundação Darcy Ribeiro (Fundar), no Rio de Janeiro, que observou a preocupação
do antropólogo com os indígenas e o meio ambiente, como pelo professor
argentino da Universidade San Martin (Unsam), de Buenos Aires, Andrés Kozel,
coautor do livro Os futuros de Darcy Ribeiro (Elefante Editora), lançado neste
ano.
"Darcy
estudou muitos assuntos que hoje estamos vivendo", disse Kozel.
Seu amigo e
escritor Eric Nepomuceno, que o visitou até os últimos de seus dias, disse à
BBC News Brasil por que entende que Darcy foi um intelectual diferente.
"Darcy foi
um desses pouquíssimos exemplos de intelectual que não fica de longe examinando
números e estudando situações para depois teorizar soluções. Não, não: ele, que
ao lado de Celso Furtado foi o intelectual brasileiro que mais peso e
influência exerceu na América Hispânica na segunda metade do século 20, jamais
ficou na contemplação", diz Nepomuceno.
"Foi à
luta, foi à realidade. Era um visionário, talvez, mas um visionário que foi
para as trincheiras batalhar pelo que acreditava", complementa.
Apaixonado
pela questão indígena
Quando tinha 24
anos, mudou-se de São Paulo para uma comunidade indígena no Pantanal, em Mato
Grosso do Sul. Mais tarde, moraria com outros indígenas entre o Pará e o
Maranhão.
Eram os anos
1940 e 1950, e Darcy, ex-estudante de medicina, queria entender a vida dos
povos originários. Não exatamente pelos estudos específicos da Medicina, mas
por seu interesse pelos povos. Conta que acabou se apaixonando pela questão e
ficou amigo dos indígenas.
"Eu fiz uma
coisa pelos índios que foi criar o Parque do Xingu [em Mato Grosso]. Mas eles
fizeram mais por mim. Eles me deram dignidade e hoje posso ir a qualquer país
do mundo falar de índio", disse.
No Diários
Índios, ele relata sua experiência com os Urubus-Kaapor, na região amazônica. A
convivência com esse povo foi transformada num filme do alemão Heinz Forthmann,
que Darcy convidou para acompanhá-lo em algumas expedições amazônicas.
"Darcy
identificou que os Urubus-Kaapor eram os últimos tupinambás, descendentes
diretos deles", afirmou a antropóloga Gisele Jacon de Araújo Moreira, que
trabalhou sete anos com o intelectual, desde os tempos em que ele foi senador
até seu falecimento.
Entre os fatos
públicos que marcaram a vida política de Darcy Ribeiro está a presença do
cacique xavante Mario Juruna, que teve seu apoio para ser o primeiro indígena
eleito deputado federal.
Juruna, que foi
do Partido Democrático Trabalhista (PDT), gravava, com um pequeno gravador,
todas as declarações dos políticos. Era uma forma de poder cobrar depois que as
palavras fossem cumpridas.
Em dezembro de
1994, então com 72 anos, Darcy ficou internado em uma Unidade de Tratamento
Intensivo (UTI), no Rio de Janeiro, e quase morreu. Diferentes indígenas tribos
fizessem rituais por sua cura.
Educação
pública e gratuita
Ao chegar à casa
dos 30 anos, após sua vida com os indígenas e sua aproximação com os irmãos
sertanistas Villas-Bôas, Darcy conviveu com o educador Anísio Teixeira e passou
a ter paixão pela educação.
Foi um defensor
contumaz da educação pública e gratuita para todos, como um dos lemas
fundamentais no Brasil.
"Se os
governantes não construírem escolas, em 20 anos faltará dinheiro para construir
presídios", disse num discurso no início dos anos 1980.
Darcy dizia que,
sem a educação, os colonizadores acabariam vencendo. "Darcy era sociólogo,
antropólogo, escritor, romancista, político e estadista", afirma o
presidente da Fundação Darcy Ribeiro (Fundar), José Ronaldo Alves da Cunha.
Foi ministro da
Educação e chefe da Casa Civil no governo de João Goulart (1961-1964),
derrubado pelo golpe militar.
Nesse período, o
projeto inovador da Universidade de Brasília, sem segmentação por
departamentos, regrediu, recorda o presidente da Fundar. Por isso, naquele
discurso na Sorbonne, Darcy disse ter "fracassado" ao citar a
universidade.
Com a ditadura,
Goulart e Darcy se exilaram em países da América Latina, e o intelectual foi
convidado para dar palestras em várias universidades da região. O tempo no
exílio acabou tendo influência na sua obra.
Era a
"Pátria Grande", dizia ele, expressão citada por governos de
centro-esquerda e de esquerda da América do Sul para se referir à região.
Vida
política
Darcy foi
filiado ao PDT, vice-governador do Rio de Janeiro no governo de Leonel Brizola
e senador da República quando criou o projeto de Lei de Diretrizes e Bases da
Educação.
A lei, aprovada
em 1996, é chamada de Lei Darcy Ribeiro e estabelece pontos para a formação dos
profissionais de educação, para garantir o acesso de toda a população à
educação gratuita e de qualidade, para valorizar os profissionais da educação e
do dever da União, do Estado e dos municípios com a educação pública. A lei
continua em vigor.
"Darcy era
um homem político. E ele fazia a política no melhor sentido da expressão",
disse José Ronaldo. Ele se construiu buscando as "matrizes"
brasileiras, com os indígenas, com os movimentos negros, com a educação e com a
política.
Ex-integrante do
Partido Comunista, nos tempos da juventude, onde dizia ter aprendido muito
sobre a importância de conceitos, por exemplo, da educação e da reforma
agrária, ele não demonstrava convicção plena no comunismo e acabou se afastando
do partido.
Entre seus amigos,
já na idade adulta, estava o arquiteto Oscar Niemeyer, comunista declarado, com
quem compartilhava interesses de inclusão social.
Foi já nos anos
1980, no governo Brizola, que concretizou o projeto dos Centros Integrados de
Educação Pública (Cieps). Ele acompanhava as obras das escolas, o currículo
escolar e defendia a cultura local, recorda Gisele Jacon.
O legado de
Darcy Ribeiro também inclui o Parque Nacional do Xingu (hoje Parque Indígena do
Xingu), o Museu do Índio, o Memorial da América Latina, a Universidade Nacional
de Brasília (que, por ideia dele, tem um "beijódromo"), o Monumento
ao Zumbi dos Palmares e o Sambódromo do Rio de Janeiro (que, por ele, seria
utilizado como escola nos períodos fora do Carnaval).
Fuga
do hospital para escrever
Um mês após a
internação na UTI, considerado um paciente terminal, em janeiro de 1995 Darcy
foge do hospital para concluir em uma casa de praia em Maricá (RJ) seu livro O
Povo Brasileiro - a Formação e o Sentido do Brasil, um clássico sobre a
identidade e as muitas diversidades regionais brasileiras e que virou
documentário.
"Eu não
queria morrer sem terminar esse livro. Eu passei 30 anos e 40 dias escrevendo
esse livro", recordou três meses depois daquela fuga.
"Das
pouquíssimas brigas sérias que tivemos, uma delas foi porque me recusei a
ajudar o Darcy a fugir do hospital. Depois estive um sem-fim de vezes com ele
na casa de Maricá, uma praia perto do Rio, onde se abrigou", recordou
Nepomuceno.
Sobre o livro,
Darcy contou em 1995 em entrevista ao programa Roda Viva que queria saber
"por que o Brasil não deu certo. Por que perdemos? Por que mais uma vez a
direita ganhou? Porque o Brasil não deu certo do ponto de vista do seu
povo?".
Para ele, o país
era algo novo e que merecia ser estudado, compreendido.
"O Brasil é
um gênero novo humano. Fundir herança genética e cultural índia, negra,
europeia num gênero humano novo. Numa coisa nova. Nunca houve. Isso é a
aventura brasileira", disse.
Ele morreu dois
anos depois, em 1997, em Brasília, e naqueles dois últimos anos de vida ainda
escreveu a autobiografia Confissões.
Otimismo
e inconformismo
Para o
presidente da Fundação Darcy Ribeiro, o antropólogo e educador era otimista,
mas sofria muito com o que ele enxergava do futuro. "Aquilo que o Brasil
poderia ser (...) e ele sofria pelo que o Brasil ainda não era", afirmou.
Ao mesmo tempo
era definido como otimista, Darcy era também inconformado ou indignado, como
dizia.
"A classe
dominante sempre se deu bem e continua se dando bem. Mas o povão tá aí, com uma
fome que é espantosa. Por que há fome nesse país?", disse e escreveu há
quase 30 anos.
Ele provocou
prantos no discurso que fez no enterro do cineasta Glauber Rocha, em 1981, ao
afirmar que, certa vez, o artista chorava e dizia "o país que não deu
certo".
"Glauber
chorava a dor que todos os brasileiros deveriam chorar, a dor das crianças com
fome no Brasil, a dor do país que não deu certo. Glauber chorava a estupidez, a
brutalidade, a mediocridade, a tortura."
Ao buscar
entender a humanidade e, especialmente o Brasil, Darcy Ribeiro dizia que
buscava e constatava "beleza". Nepomuceno diz que o intelectual
deixou um legado imenso, mas lamenta que o Brasil seja um país
"desmemoriado".
"Recorro ao
próprio Darcy para chamar à lembrança os três pontos cruciais de tudo que ele
fez, que moveram sua luta perene: educação para todos, salvar os indígenas e a
floresta, reforma agrária. Criar uma sociedade com plena e palpável noção de
seus direitos, distribuir a consciência da necessária cidadania. Entender, como
defendeu com clareza um de seus amigos, o escritor uruguaio Eduardo Galeano (As
Veias Abertas da América Latina), que a história não pode se limitar a ser
herança, tem de ser construída", disse.
BBC (com adaptações)
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