O acordo firmado em 1773 dizia que após pagar cento e vinte oitavas de ouro dentro de quatro anos, a angolana Ana Rosa Pereira receberia sua carta de alforria de Antônio Ribeiro da Fonseca, morador de Santa Bárbara. Mas se não cumprisse com o combinado, voltaria ao cativeiro e todo o ouro que havia dado para o seu proprietário não seria devolvido.
Antes que pudesse dar cabo na dívida, porém, seu senhor a obrigou a voltar a servir como escrava. Ele argumentava que o período tinha acabado, quando na verdade ainda faltava um ano.
Por isso, em 1776, Pereira teve que entrar com um
requerimento na Justiça para que Fonseca honrasse sua palavra, senão acabaria
"perdendo o dinheiro que deu e [ficaria] cativa toda a vida". Alegou
que o homem tomou suas criações de galinhas, animais castrados, suas plantações
de milho, e os sabões por ela produzidos, tirando-lhe, assim, os recursos
necessários para levantar a quantia devida para conquistar sua liberdade.
Apesar de uma exceção, a realidade da angolana era a
mesma de diversas mulheres escravizadas durante o período colonial brasileiro,
que precisaram apresentar requerimentos na Justiça para pleitear sua própria
liberdade ou a liberdade de seus filhos, mesmo após terem cumprido o acordo
feito com seus proprietários.
Os documentos históricos foram reunidos pelo projeto
MAP (Mulheres da América Portuguesa), conduzido por pesquisadoras do Grupo de
Pesquisas Humanidades Digitais da USP (Universidade de São Paulo).
"A documentação que temos é marcada pela
característica da mulher que por alguma razão saiu da esfera privada e teve uma
participação na esfera pública, onde circulam esses escritos. Em geral é porque
ela transgrediu alguma regra que se configurava no espaço privado onde ela não
só não ia escrever, como aquilo não seria guardado para a posterioridade",
explica uma das coordenadoras do projeto, a professora da FFLCH (Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas) da USP Maria Clara Paixão de Souza.
A maior parte dos documentos diz respeito à classe
proprietária, isto é, as mulheres que possuíam bens e escravos. Uma pequena
parcela fala sobre mulheres escravizadas ou libertas e, na maior parte dos
casos, elas estão pleiteando uma liberdade pela qual pagaram mas não receberam
ou, no caso de processos inquisitoriais, sendo acusadas de um crime.
Para chegar aos documentos, as pesquisadoras buscaram
nos arquivos públicos por palavras-chaves relacionadas aos temas femininos, até
que chegaram aos requerimentos feitos por mulheres escravizadas.
Perceberam que a maioria delas tinham a alforria
conquistada, mas o documento de liberdade não significava uma vida fora do
cativeiro.
"Os pedidos que elas fazem às autoridades em sua
maioria tratam do desrespeito à conquista da própria liberdade. A maioria dos
requerimentos que nós temos elas estão contando que elas conseguiram guardar o
dinheiro pra comprar a própria liberdade, mas os senhores rasgaram, esconderam
ou até as levaram para outro local e as venderam como se fossem escravizadas,
não só elas como os filhos", conta Elisa Hard Leitão Motta, pesquisadora
do núcleo que estuda alguns dos pedidos feitos por mulheres escravizadas.
Para comprar sua liberdade, os negros escravizados
realizavam pequenos trabalhos remunerados para juntar dinheiro e comprar sua
carta de alforria, mas o mais comum era a trocar por serviços. Combinavam com o
seu proprietário que trabalhariam por mais uma determinada quantidade de anos
e, após esse período, o seu senhor os livraria do cativeiro.
Mas chegar até o final de qualquer acordo era
extremamente difícil e quase a totalidade das pessoas escravizadas morriam como
escravas, explica a professora do departamento de História da Universidade de
Pittsburgh (EUA) Keila Grinberg. Nos casos em que conseguiam a liberdade, não
era por benevolência do proprietário ou porque os agentes da Justiça tinham uma
inclinação abolicionista, mas por resistência contra a escravidão, explica a
professora.
"Essas tentativas de busca pela liberdade fazem
parte da resistência contra a escravidão de uma forma mais ampla. Isso também
depende de uma certa capacidade de negociação, que é uma negociação desigual
entre senhores e escravizados. Quando as negociações não davam certo, os
escravos iam para a Justiça", afirma Grinberg.
De Marcelina, o preço foi cobrado em dinheiro. Depois
de juntar a quantia necessária para comprar sua carta de alforria por 115.200
réis, sua proprietária Josefa Joaquina José de Toledo, viúva de seu antigo
dono, rasgou a carta de liberdade que havia lhe dado e exigiu 204.800 réis,
quase o dobro do valor acordado.
Por isso, em 1819, a cativa precisou entrar com um
requerimento na Justiça para pleitear sua liberdade pelo valor avaliado em um
inventário, anexado aos documentos.
O requerimento afirma que o valor pedido feito pela
proprietária ia contra as "Leis do Reino", pois a propriedade -no
caso, a escravizada- tinha sido avaliada por um preço inferior pelo tabelião
Francisco José Barbosa.
"Sendo certo, em direito, que nenhum possuidor da
coisa pode pedir por ela mais do que é devido, e neste caso não é a suplicante
obrigada à maior quantia do que a de sua avaliação, segundo a disposição das
Leis do Reino que assaz protege o direito da liberdade", diz o documento.
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Mas Toledo, em resposta ao pedido de Marcelina, diz que
é lícito pedir pelo o que é seu, o valor que lhe convém. "É inteiramente
falso dizer a escrava suplicante que, tendo-lhe eu conferido liberdade, rasguei
a carta respectiva", escreveu.
Assim como em todos os outros documentos encontrados
pelas pesquisadoras, porém, não é possível saber o desfecho da história.
Enquanto as mulheres da classe proprietária na maioria
das vezes carregavam nome e sobrenome, e possuem outros tipos de registros como
cartas escritas a próprio punho, as mulheres negras assim como Marcelina são
registradas apenas com nome próprio e com seu discurso relatado por membros do
serviço público. Por serem apenas a terceira pessoa dos documentos, não é possível
conhecer sua caligrafia ou mesmo saber se eram letradas.
"A natureza destes documentos é a escrita por um
oficial da administração pública. Então mesmo as mulheres que classe social
mais elevada que iam requerer por exemplo uma herança ou uma propriedade, quem
escrevia o requerimento não eram elas", explica a professora da FFLCH-USP
Vanessa Martins do Monte, coordenadora do projeto.
"De toda forma é interessante que essas mulheres
forras, libertas, que tinham um documento que comprovava isso, chegassem à
administração e relatassem essa situação."
Victoria
Damasceno, Folhapress, no Yahoo notícias
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