Para Marcos Mendes, é muito difícil coordenar um acordo social que
reduza benefícios em prol de um país mais eficiente e menos desigual
Ao longo dos 30 anos de
redemocratização do Brasil, o Estado incorporou programas de proteção social
aos mais pobres ao mesmo tempo em que ampliou as políticas de proteção e
benefícios aos mais ricos e à classe média.
Para dar conta de
atender a todos - alguns com voto, outros com poder econômico, outros com poder
de formar opinião na sociedade -, o gasto público passou de algo próximo a 20%
do Produto Interno Bruto (PIB) para os mais de 35% atuais. Com isso, o Brasil
ficou preso na armadilha de país ainda muito desigual e com baixo crescimento,
sustenta o economista Marcos Mendes, consultor legislativo do Senado.
Para voltar a crescer,
o Brasil precisa ser menos desigual, e o caminho passa por escolher as reformas
que, ao mesmo tempo, tragam mais eficiência e redistribuam renda. Na mira do
que precisa ser desmontado, diz Mendes, estão muito mais as transferências de
renda via BNDES, do que via Bolsa Família.
A tese de Mendes - que
virou o livro “Por que o Brasil cresce pouco? “, editado pela Campus - é de que
o conflito distributivo no país ficou tão sério que ninguém sabe quem ganha
mais ou quem perde mais, e qual a conta de cada um.
Em parte polêmica de
sua análise, ele defende que a democracia agravou esse conflito. Mas para quem
acha que isso significa uma defesa de governos autoritários, Mendes deixa claro
que pensa justamente o contrário. O livro de Mendes, doutor pela Universidade
de São Paulo (USP), começou a ser desenvolvido em 2012, quando esteve no
Departamento de Economia da London School of Economics, tem prefácio do
ex-diretor de Política Econômica do Ministério da Fazenda, Marcos Lisboa, e
apresentação de Samuel Pessôa, pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia
da Fundação Getúlio Vargas Ibre/(FGV). A seguir, os principais trechos da
entrevista.
Valor:
Por que o sr. avalia que a combinação de alta desigualdade e democracia afeta o
crescimento?
Marcos Mendes: Eu
trabalho há 20 anos com política fiscal e há 20 anos eu e todos os economistas
fiscais estamos falando que é preciso controlar o crescimento do gasto público,
da carga tributária. Você já teve um governo do PSDB que não fez isso, um do PT
que não fez isso. Quer dizer, você já teve alternância no poder e as coisas
continuam as mesmas.
Então não é
simplesmente uma opção de política de gastar mais ou gastar menos, de tributar
mais, ou tributar menos.
Valor:
Então, o que está em jogo?
Mendes: Tem alguma
coisa por trás disso. O que era o Estado brasileiro antes da redemocratização?
Só quem tinha acesso ao Estado brasileiro antes da redemocratização eram os
grandes grupos econômicos e a classe média alta. Você conseguia atender esse
público com uma tributação e um gasto público na faixa de 20% do PIB, e os
pobres simplesmente não tinham vez. Os indicadores sociais eram africanos, a
assistência à saúde não era integral, a escola pública não era acessível aos
pobres. Com a redemocratização, os mais ricos continuaram com canal de acesso
ao poder e continuaram obtendo do Estado o que obtinham antes, como crédito
subsidiado, proteção comercial às indústrias, perdão às dívidas agrícolas, uma
Justiça que favorece quem tem dinheiro para pagar advogado mais caro, regulação
fraca, ou seja, uma série de mecanismos favoráveis aos mais ricos. Com a
redemocratização, os mais pobres começaram a ter voz, porque o político precisa
de voto, que está na mão dos mais pobres. Então, você teve um boom de políticas
pró-pobre que se somaram às políticas
pró-ricos. E não foi só isso. Você abriu espaço para a pressão dos sindicatos e
outras associações, e por meio delas a classe média também teve espaço para
demandar mais do Estado. Então, com desigualdade e democracia você tem um
Estado que redistribui para os ricos, para os muito pobres e para a classe
média, não só através de gasto público, mas também de regulação econômica. E
essas duas coisas - gasto público excessivo e regulação que protege a renda de
determinados grupos - atuam contra a produtividade e o crescimento econômico.
Valor:
E como se poderia desmontar esse mecanismo do Estado concentrador?
Mendes: A primeira
reação das pessoas a esse argumento é: então você está dizendo que tem que
acabar coma democracia. Não é isso. Primeiro, porque a democracia tem seu valor
intrínseco, de liberdade de opinião, de expressão. Segundo, a não democracia
não funciona, vide a crise no governo militar. Quando você não tem transparência,
não tem liberdade de imprensa, grupos mais fortes economicamente dominam o
Estado e excluem o restante da sociedade. Você precisa, dentro do marco
democrático, encontrar políticas que ao mesmo tempo reduzam a desigualdade e
estimulem o crescimento econômico. Estamos numa situação de tanta ineficiência
que é possível ter políticas que atuem nas duas direções.
Valor:
Quais são essas políticas?
Mendes: Três delas são
mais importantes: primeiro, a reforma da Previdência Social, que é altamente
concentradora de renda, porque, apesar da grande parcela de benefícios pelo
mínimo, tem outra parcela grande, com peso financeiro razoável, que não é de
salário mínimo. Também tem uma regra de pensões por morte muito benevolente, e
tem a previdência dos servidores públicos. A Previdência tem dois problemas:
ela não se sustenta sozinha e ela bloqueia o crescimento, porque absorve
poupança da sociedade.
Valor:
Quais as outras políticas?
Mendes: A segunda é
educação. Com ela, você aumenta a produtividade do trabalhador, aumenta a
produtividade geral da economia e a igualdade de oportunidades. Com uma reforma
da educação no Brasil que diminua os custos do Estado com ensino superior e
foque no ensino básico, onde a maioria da população pobre está, você tem, no
longo prazo, uma melhoria da qualidade da educação e, portanto, maior igualdade
de oportunidades. Hoje, o país gasta cinco vezes mais com um aluno na
universidade pública que no ciclo fundamental. Por fim, na infraestrutura você
tem espaço para fazer gastos que melhorem a qualidade de vida dos mais pobres e
melhorem o funcionamento da economia, como transporte público nas grandes
cidades e saneamento básico.
Valor:
E qual o caminho para essas reformas?
Mendes: Temos tanta
dificuldade para fazer reformas que é preciso estabelecer prioridades. Nenhum
presidente eleito pode chegar no governo com uma cesta enorme de reformas,
porque o espaço político para fazê-las é muito pequeno. Você tem que escolher
reformas, e um critério seria aquelas que ao mesmo tempo tenham um impacto significativo
sobre crescimento e redistribuição.
“Com democracia e desigualdade, você tem um Estado que redistribui
para os muito pobres, os ricos e para a classe média.”
Valor:
Isso passaria por reduzir as políticas que favorecem a concentração pelo lado dos
ricos?
Mendes: Exatamente. Não
adianta hoje você dizer que vai fazer uma reforma tributária no Brasil.
Qualquer reforma vai reduzir a arrecadação, e aí não vai ter dinheiro para
pagar todas essas despesas. Primeiro tem que reformar pelo lado do gasto. Tem
que reforçar as instituições fiscais, a lei de responsabilidade fiscal, acabar
com contabilidade criativa, criar mecanismos de transparência, cumprir metas
fiscais. Quando você tem uma restrição fiscal sobra menos espaço para os grupos
se organizarem e conseguirem despesas a seu favor. Esse é um ponto. O segundo
ponto é colocar muito peso político para bloquear as contrarreformas. No
Congresso há uma série de projetos de lei que aumentam as despesas da
Previdência e desfazem as reformas feitas no passado, reduzem tempo de
contribuição, criam aposentadorias especiais, acabam com o fator
previdenciário. Uma série de coisas que, se aprovadas, são uma bomba fiscal.
Valor:
Nessas escolhas, algumas políticas que ajudaram na redução da desigualdade nos
últimos anos, poderiam ser mantidas?
Mendes: Claro. Você
precisa fazer uma escolha das políticas que são mais eficientes. Então,
nitidamente, o que os especialistas da área social mostram, é que o Bolsa
Família é muito mais eficiente que qualquer outro programa social. Com um custo
muito menor, ele tira muito mais gente da pobreza, e reduz muito mais o índice
de desigualdade. Agora, você tem políticas que são mais controversas, como a do
aumento real do salário mínimo. Ela tem diminuído a desigualdade, mas a um custo
fiscal muito alto. Ao mesmo tempo, se você simplesmente acabar com o aumento
real do mínimo e não colocar nenhuma outra política social eficaz no lugar,
você vai ter problemas com relação ao indicador de desigualdade. Então, é
preciso focar nos programas que geram, efetivamente, maior resultado. Mas
também não pode pensar só em resultado de curto prazo.
Valor:
Que programas são esses?
Mendes: Você precisa
migrar de uma ideia de programa social que coloca dinheiro no bolso das pessoas
para programas sociais que dão condições para as pessoas viverem bem e serem
produtivas. Qual a ideia? Se a desigualdade está caindo, e cair forte no médio
e longo prazo, esse problema pode se resolver por si só. Se a gente continuar
reduzindo a desigualdade por mais 15 anos em ritmo razoável, você vai ter uma
grande sociedade de classe média no Brasil e essa sociedade vai ser menos
dependente de assistência social e vai demandar mais serviços públicos de
qualidade. Ela não vai estar interessada em ficar recebendo benefício social,
ela vai estar um patamar acima. Esse é o cenário que eu chamo de virtuoso, com
a desigualdade caindo fortemente e, no futuro, acaba esse conflito
redistributivo. Mas esse não é o único cenário.
Valor:
Qual é o outro cenário?
Mendes: Os dados que os
especialistas estão levantando mostram que a desigualdade está estacionando em
um patamar ainda muito alto. Então, se a desigualdade parar de cair - e há
motivos para ela parar de cair - o Brasil pode ficar nesse modelo de alto
conflito distributivo e baixo crescimento por muitos anos.
Valor:
O que estaria levando a esse estacionamento da queda?
Mendes: São vários
fatores e aí estou me servindo da literatura da área. Primeiro, as frutas mais
fáceis de serem colhidas já foram colhidas. Se você já botou as pessoas na
escola, se elas já chegaram ao mercado de trabalho com mais escolaridade, e
isso já elevou o salário, daqui pra frente você vai precisar melhorar a
qualidade da educação. E melhorar a qualidade da educação é muito mais difícil
que colocar as pessoas na escola. Segundo, os programas sociais, como Bolsa
Família, já atingiram a universalização, já não tem mais quem incluir, então
você só vai melhorar a redução da desigualdade por meio deles se você aumentar
o valor desses benefícios. Em terceiro lugar, você passou por um boom de
commodities que aumentou a renda do país e havia mais renda para distribuir.
Agora, o cenário internacional está mais difícil. Daqui para frente, ou é
melhorando a qualidade da educação ou é melhorando a qualidade dos empregos oferecidos.
É muito mais difícil do que foi feito até agora.
Valor:
E já existe maturidade no país para desfazer essa política de Estado
distribuidor de benefícios?
Mendes: Não acredito.
Acho que a polarização política é muito forte, ninguém está disposto a abrir
mão dos seus privilégios, dos seus benefícios. E essa tensão tende a aumentar
ainda mais com o país crescendo pouco. Quando falo que o Brasil cresce pouco
não estou falando desse pibinho dos últimos três anos. O Brasil cresce pouco
nos últimos 30 anos. E isso vem de vários fatores que baixam a produtividade da
economia e baixam a taxa de investimento. Nossa economia é muito fechada, temos
pouca poupança para investir, temos infraestrutura ruim, população com baixo
nível de educação, empresas pequenas e pouco produtivas; e todos esses fatores
decorrem ou de uma regulação feita para proteger grupos específicos, ou de uma
pressão sobre o gasto do Estado que leva a um aumento da carga tributária, que
leva a um déficit público que reduz a poupança agregada da economia. E eu não
vejo a sociedade brasileira com maturidade para admitir que precisa sentar à
mesa, negociar e cada um ceder um pouco.
“Não vejo a sociedade brasileira com maturidade para sentar à mesa,
negociar e cada um ceder um pouco.”
Valor:
Algo poderia detonar uma mudança nesse cenário, ou vamos ficar presos no baixo
crescimento?
Mendes: O que poderia
detonar uma mudança de percepção seria uma crise econômica. Na história recente
do Brasil você teve dois grandes momentos de reforma, os dois detonados por
crise. Primeiro você teve a crise que levou ao golpe militar, quando a economia
estava numa crise forte. E logo depois do golpe, você teve uma reforma que
criou o Banco Central, uma reforma tributária que levou ao imposto sobre valor
agregado, uma abertura da economia. Mas tão logo a crise se dissipou, os grupos
de pressão foram comendo essa reforma. E a outra foi nos anos 90, quando você
teve uma crise fiscal forte, de balanço de pagamentos, que forçou o governo a
fazer privatização, a controlar o gasto público, a criar o famoso tripé, com
câmbio flutuante, meta de inflação e resultado fiscal. Tão logo o período de
crise se dissipou, a abertura dos anos 90 foi sendo revertida, a questão fiscal
vem se deteriorando, a contrarreforma foi se fazendo e não se consegue reforma
nenhuma. Então, a possibilidade de o Brasil fazer um ajuste é uma crise, o que
é um perigo, porque a crise traz oportunidade, mas traz também problemas
sérios.
Valor:
Esse é o único cenário?
Mendes: Outro cenário é
ficarmos muitos anos com baixo crescimento, redistribuindo para rico, para
pobre, para classe média, e, à medida que a economia não cresce, o cobertor vai
ficando curto e você ruma para uma crise fiscal grave. E no limite até a
democracia corre risco. Ou há a possibilidade de, mediante uma coalizão
política forte, o país fazer as reformas certas e andar em direção ao círculo
virtuoso. Se fizer as reformas que mantenham a queda na desigualdade, permitam
o controle do gasto público, e o governo suportar a pressão por alguns anos,
você pode puxar o fio da meada. Uma reforma faz a outra reforma ficar mais
fácil, você entra no círculo virtuoso, mas eu sou pessimista.
Valor:
Se fosse colocar em uma balança, dá para saber onde, de que lado - dos pobres,
da classe média ou dos ricos - o Estado gasta mais?
Mendes: Vou fazer uma
conta simples. Só o subsídio do BNDES - a diferença entre o que o Tesouro paga
para tomar no mercado e o que ele recebe de volta pela taxa subsidiada do BNDES
- custa R$ 24 bilhões por ano, que é exatamente o que ele gasta por ano no
Bolsa Família. Junta isso com o que a economia perde com o comércio
internacional protegido, com agências reguladoras fracas, eu acredito que os
benefícios que vão a para a classe média e a classe alta são muito maiores do
que o que pinga para os mais pobres.
Valor:
Se o Brasil fosse menos desigual, poderíamos crescer mais?
Mendes: Sim. No Brasil
hoje, que é muito desigual, o rico quer bolsa-BNDES, o pobre quer Bolsa
Família, a classe média quer universidade de graça e mercado de trabalho
protegido, isso faz uma pressão sobre o Estado para gastar a favor de todo
mundo, e regular a favor de todo mundo, diminuindo não só a poupança, como a
eficiência da economia. Quando a sociedade fica mais parecida entre si,
primeiro você tem menos necessidade de programas sociais. Segundo, a sociedade
vai querer menos programas sociais porque a maior parte dela terá patrimônio,
casa, ter poupança, renda fixa, e para gerar mais benefício social, vai ter que
tributar isso. Hoje, você tributa só os 10% mais ricos. Se mais gente for
classe média, mais gente vai pagar Imposto de Renda e ter restrição a financiar
gasto público. De qualquer forma, é preciso transparência para deixar os custos
claros para a sociedade, porque aí ela vai ficar mais receptiva às reformas.
Valor:
A sociedade tem consciência de quem paga o quê?
Mendes: Não. Nessa
situação de alta desigualdade você fica numa confusão distributiva danada. Você
pensa, eu estou pagando alguma coisa, mas tenho emprego público, meu avô recebe
aposentadoria, o empresário paga, mas recebe algum benefício. Então, ninguém
sabe quem está ganhando ou quem está perdendo, quem está pagando mais ou quem
está recebendo mais. Todo mundo sabe que depois de uma reforma econômica, vai
diminuir o gasto público, vai diminuir a regulação, e que na média o país vai
estar melhor. Mas você não sabe se você vai estar acima da média ou abaixo
dela. Prefiro ficar como eu estou a dar um salto no escuro, prefiro manter meu
benefício para não ficar atrás dos outros. Coordenar esse acordo social, em que
todos abrem mão do seu benefício em prol de uma sociedade mais eficiente, menos
desigual e com menos custo tributário, é muito difícil.
Valor:
O sr. acha que em algum momento das manifestações estava se caminhando para
esse consenso redistributivo?
Mendes: Você pode fazer
duas leituras das manifestações do ano passado. Uma delas é: você aumentou a
classe média e a gente está chegando no consenso da classe média, que está
falando: eu quero educação melhor, quero transporte melhor, quero saúde melhor,
quero gasto público melhor, não quero gastar dinheiro com estádio. Poderia ser
a maioria da sociedade tendo um pensamento racional em prol do coletivo. Essa é
uma leitura positiva, mas tem uma leitura negativa: cada um foi para a rua pedir
uma coisa diferente. Como o modelo de distribuir para todo mundo está se
extinguindo, vou para a rua defender o meu privilégio. Acaba com o privilégio
do outro e mantém o meu. Estou mais propício a enxergar essa leitura.