Do Anuário Exame
2013-2014 Infraestrutura:
Um terço das obras públicas
em andamento vai custar mais do que o planejado
Reportagem de Flávia Furlan,
publicada em edição especial do Anuário Exame 2013-2014 Infraestrutura
A CONTA ESTOUROU
Por falha de
planejamento, quase um terço das obras em andamento no Brasil será concluído
com um valor superior ao previsto inicialmente. Até agora, o gasto extra está
estimado em mais de 80 bilhões de reais – e não deve parar por aí.
Quando a
companhia de saneamento básico do Estado de São Paulo (Sabesp) anunciou pela
primeira vez o orçamento da terceira etapa do projeto de despoluição do rio
Tietê, em maio de 2007, o plano era investir 2 bilhões de reais para elevar a
capacidade de esgoto tratado na região metropolitana de São Paulo de 18 500
para 24 000 litros por segundo até 2015.
Mas o
acréscimo de mais de 1 milhão de habitantes nos últimos cinco anos na Grande
São Paulo fez a companhia rever sua meta para 27 500 litros por segundo. Com
isso, a Sabesp decidiu ampliar em 70%, e não mais em 50%, a capacidade de
esgoto tratado pela estação Barueri, que atende a maioria das residências da
capital paulista. A alteração fez o projeto ficar 155 milhões de reais mais
caro.
E essa foi
apenas uma das mudanças promovidas no meio do caminho, seja por decisão da
empresa, seja pela interferência de outras obras urbanas no trabalho da Sabesp.
Passados seis anos, o projeto inicial foi para o espaço. A previsão mais
recente é entregar a obra dois anos depois do prazo inicialmente previsto – e
pelo dobro do valor do orçamento original, ou 4 bilhões de reais.
Casos como
o da Sabesp não faltam no Brasil. Um levantamento realizado por Exame, com os 1
566 principais empreendimentos em projeto ou em execução no país, revela que
27% deles tiveram acréscimo no valor original de mais de 80 bilhões de reais.
O
principal motivo apontado por especialistas para que as obras no Brasil
ultrapassem – e muito – o valor previsto é a falta de planejamento. A Lei de
Licitações permite que os empreendimentos sejam feitos com base na elaboração
de projetos básicos, que incluem menos detalhes do que os projetos executivos.
Com
informações menos precisas, a estimativa de custo inicial, muitas vezes,
mostra-se irreal. Isso faz com que alguns especialistas defendam que as obras
só podem começar depois da elaboração de um projeto executivo.
Um
planejamento minucioso seria desejável, mas, para os gestores, nem sempre é
viável. No caso da Sabesp, o valor inicial da terceira etapa do projeto de
despoluição do rio Tietê foi estimado com base na experiência das duas fases
anteriores. “Se parássemos tudo para fazer um projeto executivo em 2007,
perderíamos o tempo e não daríamos continuidade à obra”, afirma João Paulo
Tavares Papa, diretor de empreendimentos da Sabesp.
O Tribunal
de Contas da União (TCU) acredita que o cenário seria bem melhor se os
projetos, mesmo no estágio básico, fossem bem elaborados. Mas não é o que
acontece. Das 200 obras que sofreram intervenção do TCU em 2012, 45% tinham
projetos deficientes – esse foi o principal problema verificado. “O gestor encara
o plano básico como mera formalidade e não tem estrutura para avaliá-lo”,
afirma Eduardo Nery, secretário de fiscalização de obras de energia e
saneamento do TCU.
Sem a
atenção devida, os projetos são elaborados quase no piloto automático, seguindo
os parâmetros dos anteriores, mas, não raro, acabam errando na avaliação. No
caso da construção da usina Angra 3, o primeiro orçamento previa um custo de
7,3 bilhões de reais. Hoje, está em 14 bilhões de reais.
A
Eletronuclear, responsável pela obra, diz que foi pega de surpresa pelo câmbio.
Em 2013, a desvalorização do real em relação a outras moedas fez o custo com
equipamentos importados crescer 15% – a reserva de contingência para cobrir os
gastos imprevistos era de apenas 5%.
O fato de
grandes obras estourarem o orçamento não é exclusividade do Brasil. Uma
pesquisa do governo britânico mostra que, mesmo com a criação de um
departamento específico para zelar que os planos aprovados sejam cumpridos à
risca, apenas um terço dos maiores projetos do país é entregue dentro do prazo
e do orçamento previstos.
Mas, como
num cheque especial, a conta só pode estourar até um limite estabelecido. “Em
uma obra mais complexa, considera-se aceitável um aumento de até 50% no custo”,
diz Paulo Fleury, presidente do Instituto de Logística e Supply Chain (Ilos).
A
realidade tem sido bem diferente no Brasil. Um levantamento do Ilos com os 12
maiores projetos do Programa de Aceleração do Crescimento mostra que, em média,
o custo final foi 85% maior do que o inicial.
Além de
falhas no projeto, outro motivo que contribui para a conta estourar no Brasil é
que, na maioria das concorrências, o vencedor é a empresa que propõe tocar a
obra pelo menor preço. Com frequência, as empresas reduzem o valor a um patamar
deliberadamente baixo, com a intenção de ganhar a concorrência e, no decorrer
do projeto, apresentar aditivos para elevar o preço inicial.
A
legislação brasileira permite que, nas licitações, esses aditivos sejam de até
25% sobre o valor inicial. “Os tribunais entendem agora que, quando o pedido
decorre de alteração do projeto para adequá-lo tecnicamente, pode-se superar
esse limite”, afirma a advogada Letícia Queiroz, especialista em direito
regulatório do escritório Siqueira Castro.
O novo
entendimento abre espaço para discussões. A Petrobras está no centro de uma
disputa recente sobre o tema. Algumas de suas prestadoras de serviço acusam a
estatal de mudanças no escopo dos orçamentos contratados e pedem a liberação de
mais recursos para terminar as obras do Complexo Petroquímico do Estado do Rio
de Janeiro (Comperj). A Petrobras acusa as prestadoras de serviço de abusar de
aditivos. O caso está na Justiça.
Para
evitar o pedido exagerado de aditivos, o governo criou o regime diferenciado de
contratação. Nele, a concorrência é feita com base em uma estimativa de valor
dos gestores públicos. Depois de contratada a empresa, ela é responsável por
fazer todos os projetos. No entanto, não pode exigir aditivos.
O modelo
tem sido criticado pelos participantes das concorrências, que dizem que os
preços definidos pelos órgãos públicos estão defasados. Resultado: as
licitações têm fracassado. Foi o caso das obras para construir uma segunda
ponte da Amizade, entre o Brasil e o Paraguai.
As sete
empresas concorrentes apresentaram um valor mínimo de 217 milhões de reais em
abril deste ano. O Departamento Nacional de Infraestrutura de Transporte (Dnit)
tinha um orçamento de 195 milhões de reais. “A concorrência deve prezar não só
pelo preço mais vantajoso mas também pela competência técnica da empresa”, diz
Carlos Campos Neto, pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada.
O ambiente
regulatório incerto no Brasil também faz aumentar o valor das obras. Para
construir a usina hidrelétrica de Santo Antônio, no rio Madeira, em Rondônia, o
consórcio responsável pela obra estima que gastará 16,4 bilhões de reais, 4,2
bilhões mais que o previsto inicialmente. Desse total, 2,6 bilhões dizem
respeito à correção monetária aplicada desde 2007. O restante é resultado de
imprevistos de toda natureza, alguns bem prosaicos. Por exemplo: um grupo de 2
000 pescadores processa o consórcio pela diminuição na quantidade de peixes no
rio causada pela obra.
Para confirmar se a oferta de peixes realmente caiu,
o consórcio teve de contratar uma empresa de consultoria para estimar a
evolução do preço do peixe no período e instalar sensores que mostram a
frequência da presença de peixes na região. Isso sem falar nos custos para se
defender judicialmente, com a contratação de advogados. “Isso não estava em
nosso orçamento”, afirma Eduardo Pinto, presidente do consórcio responsável
pela obra. “No Brasil, existe um vácuo institucional que aumenta nosso custo.”