O Brasil é considerado um país megabiodiverso, ou seja, está entre
aqueles que abrigam os maiores índices de biodiversidade do mundo – mas isso em
relação aos ambientes continentais (terrestres e de água doce). Segundo o
projeto Censo da vida Marinha as regiões marinhas consideradas megabiodiversas
estão localizadas entre o Sudeste Asiático e a Austrália (no encontro dos
oceanos Índico e Pacífico), na costa africana do Oceano Índico e no Mar do
Caribe. Segundo esse estudo, a costa brasileira não parece ser particularmente
rica em espécies marinhas.
Entretanto, o litoral brasileiro se estende por mais de
8.500 km, de latitudes próximas à região equatorial (4º30’ N) até o Chuí
(33º74’), incluindo regiões tropicais e subtropicais, e é banhado por um
complexo sistema de correntes costeiras e oceânicas. Nesse grande espaço
marinho, há diferentes ambientes, como praias, manguezais, costões rochosos,
recifes de coral, extensos bancos de rodolitos (que são nódulos de algas
calcárias), regiões lagunares, entre muitos outros. Além disso, sob a
jurisdição nacional há diversas ilhas costeiras e quatro arquipélagos
oceânicos: Atol das Rocas; Trindade e Martim Vaz; São Pedro e São Paulo; e
Fernando de Noronha. Estas ilhas apresentam uma biodiversidade bastante
particular, com muitas espécies endêmicas, ou seja, de ocorrência restrita a
uma região geográfica específica. Mas há também os ambientes de mar profundo,
nos quais uma imensa diversidade de espécies ainda aguarda para ser conhecida
pela ciência, incluindo organismos que vivem em ambientes extremos como as
fontes hidrotermais.
Originalmente, as espécies marinhas na costa do Brasil
foram em grande parte identificadas com base em suas semelhanças morfológicas
com espécies descritas em outras regiões do mundo, como Caribe, Atlântico Norte
e Austrália. Tomando-se o exemplo das algas, muitas espécies citadas para o
Brasil eram consideradas de ampla ocorrência geográfica, chamadas de espécies
cosmopolitas. Porém, sequenciando trechos do Ácido Desoxirribonucleico (DNA)
desses organismos, temos verificado, em muitos casos, que essas espécies são
novas para a ciência e que algumas dessas espécies são endêmicas de regiões da
costa brasileira.
Mas como isso é feito? Primeiro, devemos compreender
que as informações genéticas, que estão presentes em todos os seres vivos,
estão armazenadas dentro de suas células, mais especificamente nas moléculas de
DNA. O DNA contém regiões que codificam genes, responsáveis por expressar
características que serão herdadas dos pais para os filhos. As técnicas de
sequenciamento de DNA permitem obter as sequências dos nucleotídeos (A,
adenina; C, citosina; G, guanina; e T, timina) que compõem essa molécula. As
sequências de trechos específicos do DNA, os chamados marcadores moleculares,
podem então ser comparadas entre as espécies, permitindo verificar semelhanças
e diferenças entre elas, e auxiliar em suas identificações – junto com outras
características como morfologia e aspectos ecológicos.
Além da comparação de pequenos trechos de DNA, o enorme
avanço tecnológico tem permitido o sequenciamento de trechos muito maiores e
até mesmo do genoma de diferentes espécies. As técnicas de sequenciamento em
larga escala passaram a ser conhecidas como “ômicas”. Por exemplo, a genômica
estuda o conjunto do genoma (genes e outras regiões contidas no DNA) de uma
espécie; a transcriptômica analisa as moléculas de Ácido Ribonucleico (RNA); a
proteômica estuda as proteínas formadas pela expressão gênica; a metabolômica
estuda as pequenas moléculas orgânicas que auxiliam no metabolismo. O uso
dessas ferramentas moleculares também tem permitido evidenciar a história
evolutiva e as relações entre espécies, além de estudar os padrões de
distribuição geográfica para organismos marinhos e quais barreiras
biogeográficas desempenham um papel na diversificação dessas espécies ao longo
de um tempo evolutivo.
O Rio Amazonas, na região Norte, é um exemplo de
barreira biogeográfica na costa brasileira. Ao desaguar um volume gigantesco de
água doce e sedimentos (cerca 20% da descarga fluvial global para o oceano),
esse fluxo impede que muitas espécies marinhas cruzem essa vasta região,
estabelecendo uma barreira entre o Mar do Caribe e a costa brasileira ao sul do
Amazonas. No sul do Brasil, outra barreira biogeográfica para muitos organismos
marinhos de fundos duros é a extensa região arenosa sem ocorrência de costões
rochosos, que é considerada a maior praia do mundo (Praia do Cassino), com
cerca de 250 km de extensão no Rio Grande do Sul até a fronteira com o Uruguai.
Ao longo da costa brasileira, existem ainda diversos rios de grande porte, como
os rios Doce e São Francisco, além de regiões com condições particulares, como
a área de ressurgência em Cabo Frio, no Estado do Rio de Janeiro. Nessa região,
a topografia combinada com ventos norte-nordeste promove a ressurgência de
águas profundas, frias e ricas em nutrientes. Essas barreiras levam ao
isolamento de populações e, ao longo do tempo, à diversificação e formação de
novas espécies, delimitando regiões com características particulares e
biodiversidade específica.
Os estudos de distribuição geográfica de espécies
marinhas usando marcadores moleculares têm mostrado que a região que fica entre
o sul da Bahia e o norte do Rio de Janeiro (incluindo todo o Estado do Espírito
Santo) é um local de transição entre ambientes tipicamente tropicais ao norte e
subtropicais ao sul. Portanto, esta região é extremamente rica em
biodiversidade marinha, incluindo espécies tropicais e subtropicais, além de
abrigar espécies endêmicas.
O avanço dos estudos tem revelado que a diversidade de
espécies marinhas que temos no Brasil é maior do que o previamente estimado,
sendo um resultado da grande diversidade de ambientes e de um longo processo
evolutivo. Mais que isso, o conhecimento sobre essa biodiversidade ainda possui
grandes lacunas que precisam ser preenchidas.
Um exemplo de como ainda conhecemos relativamente pouco
os ambientes marinhos e sua biodiversidade foi a recente descoberta, justamente
na região da foz do Amazonas, de um sistema recifal marinho que se distribui
entre as profundidades de 30 a 120 m e que pode funcionar como um corredor de
conexão de espécies marinhas entre a costa do Brasil e o Mar do Caribe. Outro
exemplo do nosso desconhecimento é o que mostra o estudo Deep reef fishes in the
world’s epicenter of marine biodiversity, publicado em 2019 por Hudson T.
Pinheiro e colaboradores: a cada duas horas de coleta em ambientes costeiros
mais profundos (30 a 150 m), cerca duas novas espécies de peixes são
descobertas!
Esses estudos são cada vez mais possíveis por conta dos
avanços das ferramentas moleculares, incluindo as ômicas. Com elas, centenas de
novas espécies marinhas para o Brasil foram descritas nos últimos anos
mostrando a existência de uma biodiversidade até então desconhecida. Diversas
pesquisas, principalmente em função da Década do Oceano, têm abordado a
importância da proteção da biodiversidade marinha e o seu potencial de
utilização como um recurso sustentável para os mais diversos fins. Destacam-se
os serviços ecossistêmicos prestados pelo oceano e que dependem desses
organismos, como a produção de oxigênio e a fixação de carbono realizadas pelas
algas. Cerca de metade do oxigênio na atmosfera vem da fotossíntese das algas
que vivem no oceano. A biodiversidade marinha, portanto, é fundamental para a
sobrevivência da humanidade. Ainda bem que as ômicas estão aí para fazer com
que nossos olhos vislumbrem uma biodiversidade oculta e particular do mar
brasileiro. Uma biodiversidade que é um presente da evolução, presente este que
pode ser usado de forma responsável, mas que, sobretudo, deve ser preservado
para o futuro da humanidade.
Mariana
Cabral de Oliveira e Tassia Biazon, Jornal da USP
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