domingo, 30 de junho de 2019

Uma entrevista do ano passado que vale a pena rever: "a política sequestrou a Justiça"


Conhecida por criticar as mazelas dos tribunais, a ex-ministra do STJ Eliana Calmon diz que, além de faturarem com decisões, as forças ocultas do Poder Judiciário agora estão unidas aos políticos para enterrar a Lava Jato

Eliana Calmon ganhou fama no Judiciário por não ter papas na língua. Como ministra do Superior Tribunal de Justiça (STJ), a segunda mais alta corte do país, ela destoava ao falar na existência de “bandidos de toga”. Atacava, em especial, a atuação de filhos de colegas que, como advogados, traficavam influência na corte graças ao livre trânsito que tinham pelos gabinetes. A aposentadoria veio há cinco anos, pouco depois de uma experiência exitosa como corregedora nacional de Justiça. No posto de xerife do Poder Judiciário brasileiro, Eliana Calmon abriu um número recorde de investigações sobre magistrados, muitas delas por enriquecimento não justificado. Fora da corte, ela passou a advogar e a depender da caneta de juízes que antes eram seus pares. Mesmo assim, a baiana de 73 anos não interrompeu os disparos. Pelo contrário.

Nesta entrevista a Crusoé, ela diz que algumas decisões judiciais recentes, como a que libertou o ex-ministro José Dirceu e a que tentou tirar da cadeia o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, são absurdas. A ex-ministra coloca na conta do Supremo Tribunal Federal (STF) a responsabilidade por despachos como o do desembargador plantonista Rogério Favreto, encarregado de assinar o malfadado alvará de soltura de Lula. E vai além: acusa o próprio Favreto e o ministro Dias Toffoli de serem “medíocres” e “partidários”, prevê uma temporada sombria para a Lava Jato e aposta que Lula será solto brevemente. A seguir, os principais trechos da entrevista que a agora advogada, recém-filiada à Rede de Marina Silva, concedeu em seu escritório, ornamentado com estatuetas de Dom Quixote.

O Judiciário ficou com a credibilidade arranhada com o vaivém jurídico deflagrado pela tentativa do desembargador Rogério Favreto de soltar o ex-presidente Lula?

Em um ambiente que tem por princípio a hierarquia, a falta de respeito ao superior hierárquico é um problema. Temo que isso comece a acontecer mais frequentemente. Num caso extremado como esse do ex-presidente Lula, houve mobilização, todo mundo soube de tudo. Mas nós temos mais de 90 tribunais. Se isso acontecer amiúde em todos, se o relator não obedecer ao colegiado, o que pode ser feito? Por isso, a punição ao (desembargador Rogério) Favreto é importante. Não é por vingança. É porque a pena administrativa tem efeito pedagógico. O Tribunal Regional Federal da 4ª Região é muito organizado, muito disciplinado. Dos regionais, é o melhor. O julgamento de Lula pela turma foi sereno, sem exibição, sem palavreado, sem esforço para aparecer. Quem apareceu foi o processo. Favreto fugiu inteiramente do padrão.

O exemplo do Supremo leva a esse tipo de problema?

Sem dúvida alguma. O Supremo está na cúpula do Poder Judiciário. E, como cúpula, ele é seguido. Antes da decisão do Favreto, eu disse que o maior prejuízo da decisão de Toffoli de soltar José Dirceu de ofício era o que ele estava plantando para as instâncias inferiores. É o mau exemplo. Não deu outra. No caso do Favreto, nem foram os advogados de Lula que pediram, não é? Foram parlamentares. É lamentável que isso aconteça. Temos exemplos de ministros que foram nomeados pelo PT, eram ligados ao PT, mas que se comportaram bem. É o caso do ministro Ayres Britto. Ele era filiado ao PT, era amigo do presidente Lula e, durante anos, todas as vezes em que Lula viajava a Aracaju, era ele que ia buscá-lo no aeroporto. Mas no momento em que entrou no Judiciário e vestiu a toga, acabou a amizade. Ele decidiu o que tinha de decidir. Com o ministro Joaquim Barbosa, foi a mesma coisa. Ele foi altamente beneficiado porque era difícil para um negro chegar ao cargo de ministro do Supremo. Mesmo assim, nunca se rendeu a Lula. Depois que ele assumiu, Lula foi à África e o convidou para ir junto. Barbosa disse: “Absolutamente, não. Eu vou para ser exibido como um troféu, para dizerem que no Brasil não existe preconceito racial? Não, eu sou um ministro do Supremo. Não vou”. E não foi. Depois, no processo do mensalão, julgou com toda a independência.

O caso do desembargador Favreto foge dessa lógica.

A questão do desembargador Favreto é diferente porque ele não era só um filiado ao PT. Ele é um militante petista, alguém ligado ao núcleo duro do PT. Com José Dirceu na Casa Civil e com o presidente Lula, foi para dentro do Ministério da Justiça para fazer a reforma do Judiciário e, dessa forma, se cacifou para ser desembargador federal. Isso tudo é triste. O PT arrebentou o Brasil. Arrebentou tudo.

O Judiciário, em especial, vive um momento delicado?

Permaneci no Judiciário por 40 anos. Em uma determinada época, eu pensava que o Judiciário poderia mudar o destino do Brasil, organizando os destinos políticos do país. Depois amadureci e, quando cheguei ao Conselho Nacional de Justiça, conheci o Judiciário por dentro, suas entranhas. E, então, vi que isso não ia acontecer nunca.

Por quê?

Porque, na verdade, a tendência do Judiciário é copiar o modelo que está em cima. No meu entendimento, quando novos juízes bem formados chegassem aos patamares mais altos da hierarquia, as coisas mudariam. Mas não mudam porque, para haver uma mudança, é preciso fraturar esse modelo. Só com muito tempo, com muita cultura, com muita democracia teremos essa melhoria. Magistrados da minha geração pensavam como eu. Na hora que sobem, contudo, as pessoas passam a repetir as mesmas práticas. O sistema é forte, o sistema se preserva e preserva todos aqueles que estão de acordo com ele. E quem se insurge contra o sistema é duramente castigado.

Com a senhora não foi assim?

Para chegar ao STJ, entrei no jogo do poder. Pedi a todo mundo, pedi aos políticos, tive padrinhos. Era para eu ser uma ficha-suja porque Edison Lobão, Jader Barbalho, Antonio Carlos Magalhães, todos esses políticos foram efetivamente meus padrinhos. E padrinhos de verdade, viu? Todos sempre me admiraram muito, me respeitaram muito… Mas fiz o seguinte: quando cheguei ao Senado para ser sabatinada, contei publicamente quem eram os meus padrinhos. Eles adoraram isso. A independência está não na forma pela qual você chega lá, mas como você se comporta.

A senhora não se sentiu obrigada a ajudá-los?

De jeito nenhum. Nada. Sempre os tratei muito bem, e eles a mim. Como sou baiana e ACM me indicou, muita gente que precisava de alguma coisa ia até ele. Pediam a Antonio Carlos para que ele pedisse a mim. E ele sempre dizia assim: “Não adianta, porque nem a mim ela atende”. Certa vez, o senador fez uma visita ao meu gabinete. Me disse que era uma visita de cortesia. Eu pensei até que era para pedir alguma coisa. Conversou amenidades e foi embora.

Não é estranho tratar como normal a busca por apoio político para chegar às cortes superiores?

Os pedidos políticos realmente são muito fortes. Houve um tempo em que eram os próprios ministros do tribunal que faziam as indicações dos candidatos. Aqueles que eram indicados por políticos eram jocosamente chamados de chapa-branca. E o chapa-branca dificilmente entrava na lista dos indicados pelo próprio tribunal porque os ministros diziam que era jogo marcado. Isso acabou. De uns anos para cá, começamos a ter uma influência muito grande da área política, principalmente em relação aos ministros do quinto constitucional, aqueles que vêm da advocacia. Essa questão do quinto é muito séria, porque as escolhas dentro da Ordem dos Advogados já são políticas. E, posteriormente, esse candidato político é indicado pelo presidente da República. E o Senado não faz a triagem, termina chancelando. Embora tenhamos a ideia de que o quinto é importante para refrescar um pouco a política judiciária interna, temos uma amarga experiência de políticos do quinto que chegam sem compromisso com a magistratura. Esse é o caso do desembargador Favreto. Veja o que ele fez com o Judiciário. Ele expôs o Judiciário a uma coisa terrível, desmoralizou o Judiciário, movimentou toda a máquina, para uma decisão que era apenas um factoide de decisão jurídica. Ele agiu politicamente.

O que fazer?

Compre uma passagem e saia do Brasil. Eu estou perdendo minhas esperanças. O corregedor (refere-se a João Otávio de Noronha, atual corregedor nacional de Justiça e futuro presidente do STJ) é super-amigo do ministro Toffoli. Super-amigo, embora não tenha nada de comunista, socialista, petista. Pelo contrário. É um homem ligado a bancos. Mas é um homem que quer viver bem, é do quinto constitucional. E quando foi corregedor no tribunal eleitoral fez a maior amizade com o Toffoli. Viajaram bastante para o exterior. Pode até ter aberto um processo (para investigar Favreto), mas esse processo vai ficar lá engavetado. Um dia o povo vai esquecer.

O ministro Dias Toffoli propôs a soltura de Dirceu de ofício, contrariando decisão do plenário sobre execução da pena após condenação em segundo grau. Ele também mereceria punição?

Os ministros do Supremo estão acima do bem e do mal. Nada os atinge. A única coisa que os atinge é um processo de impeachment levado a cabo no Senado Federal. Mas está todo mundo com o rabo preso. Não tem como. Eles são senhores absolutos. Aquelas onze criaturas são totalmente absolutas. Nós todos que defendemos um Judiciário coerente precisamos precisamos nos indignar. Precisamos mostrar para essas criaturas que isso não está certo.

Estão abusando das decisões monocráticas em detrimento das decisões do plenário?

Sim, estão quebrando uma regra básica de poder e de compostura. Estão infringindo a regra da colegialidade. Os tribunais são fortes enquanto são colegiados. Se eu tenho onze ministros maravilhosos e um colegiado fraco, tenho onze ministros fracos. E se eu tenho onze ministros muito ruins, mas uma postura colegiada firme, o colegiado se segura. Hoje eles (os ministros do Supremo) querem se sobrepor uns aos outros e mostrar quem tem mais poder. Muito ruim.

E onde isso vai parar?

A vaidade não tem limites. Principalmente quando há pessoas despreparadas, que nunca tiveram sequer o sonho de ser uma grande autoridade. É o caso do Toffoli. O Toffoli é medíocre. É uma pessoa até boa, simpática, tem um trato bom, nem era arrogante. Mas o empoderamento vai mudando, não é? Ele hoje está diferente. É uma pessoa medíocre, com poucos conhecimentos, chega ao poder pelo PT e deve tudo ao partido. É muito claro. Não gostam que eu fale, dizem que eu falo muito, que eu ataco muito. Eu não ataco. Eles é que se atacam. É só ver televisão, gente. É só ver a TV Justiça. Eu não posso coadunar com aquilo que está lá. Como hoje eu sou advogada, quando falo essas coisas as pessoas me dizem que eles vão me massacrar. E eu digo: paciência, porque antes de ser advogada, sou cidadã brasileira.

A partir de setembro, então, o país terá um medíocre como presidente do Supremo.

Sim. Ele até poderia ser medíocre, mas não ser político-partidário. Nem sempre o ministro intelectual é o melhor. Não precisa ser um sábio da Grécia para ser um grande magistrado. Precisa ter sensibilidade e seguir as regras da colegialidade, saber se portar como alguém imparcial. Isso é o que precisa.

E falta isso a Dias Toffoli?

Falta.

É um caso isolado, ou haveria outros ministros que também padecem desses mesmos males que a senhora aponta?

Eu acho que ele (Toffoli) está extrapolando nos últimos tempos. Ele vinha mais ou menos, mas agora extrapolou. O ministro Lewandowski tem a mesma postura. E o ministro Marco Aurélio sempre foi o voto vencido. Ele oscila de um lado para o outro. É um caso sui generis, como o de Gilmar Mendes, que tem soltado muita gente ligada a ele. Mas nenhum deles tem a postura político-partidária que têm o Toffoli e o Lewandowski. Nesses dois casos, é visível. O que o Lewandowski fez no julgamento da Dilma? Onde já se viu alguém que perde o mandato continuar com os direitos políticos? Lewandowski e Renan Calheiros fizeram isso. É algo que nos causa perplexidade.

A Lava Jato pode ser ainda mais afetada por essa aliança entre políticos e integrantes do Judiciário?

A Lava Jato já era. O Sergio Moro pede que a população segure o apoio, mas não vai segurar. Há aqui um processo semelhante ao que aconteceu com a Operação Mãos Limpas, na Itália. Começam bombardeando as pessoas que trabalham na investigação. No caso da Lava Jato, atacam os procuradores e o juiz Sergio Moro. A Mãos Limpas extinguiu os cinco partidos que davam sustentação ao presidente, mas depois perdeu apoio e os políticos reagiram. Hoje a Itália é um estado corrupto, com juízes que acobertam com garantismos idiotas a corrupção, a ponto de o número de processos por corrupção ser inferior ao número de processos por corrupção na Finlândia, que é o país menos corrupto do planeta. Aqui, os primeiros seis meses depois das eleições servirão para aprovar as leis contra o Ministério Público, a Polícia Federal e a Justiça. Já estão com projetos prontinhos para detonar os investigadores, exatamente como se deu na Itália.

Como enxerga o trabalho do juiz Moro?

Tem sido muito bom, de muito fôlego e muito cuidado. Agora, é óbvio que existem desacertos. Num trabalho dessa dimensão é impossível não ter falhas. Tem algumas falhas que podem ser corrigidas devidamente, e para isso tem o Supremo. Ele não é desrespeitoso, teimoso. É um juiz que se mantém muito dentro das linhas mestras de um juiz de carreira. Houve uma demasia na condução coercitiva do presidente Lula e no vazamento da interceptação telefônica (dos ex-presidentes Lula e Dilma). Eu até compreendo por que ele fez aquilo. Na insegurança quanto à posição do STF, ele tentou passar para a opinião pública a gravidade do problema. Mas não se justifica. São falhas que não comprometem a operação. O saldo é muito positivo para toda a nação. Nunca se viu uma quantidade tão grande de processos julgados dentro de critérios jurídicos. Quase todas as decisões dele são confirmadas pelo tribunal.

Dias Toffoli, que presidirá o Supremo a partir de setembro, pautará a revisão da questão da prisão em segunda instância?

Vai rever. Toffoli vai soltar Lula em setembro.

Por que magistrados com conflitos de interesses resistem tanto a se declarar impedidos ou suspeitos?

Isso vai muito da índole de cada um. Eu nunca vi nada igual, nunca vi esse envolvimento político no Judiciário. Precisaria haver uma manifestação conjunta dos magistrados para salvar o Judiciário dessas aberrações, mas é todo mundo muito medroso. Os juízes ficam com medo de reprimenda — e os advogados precisam dos tribunais.

O PT vai continuar atacando a Justiça?

Ao PT só resta esse meio. Primeiro criaram o factoide de golpe do impeachment. Isso passou. Ninguém mais fala. Agora é o golpe da condenação de Lula, para na última hora botarem o Fernando Haddad como candidato.

A senhora ficou conhecida por atacar relações duvidosas entre juízes e políticos. Qual seria a melhor alternativa às indicações políticas para os tribunais?

Em todos os países do mundo, existem escolhas políticas. Hoje, a forma menos imperfeita que temos é a de escolha de ministros do STJ, em que são os próprios ministros que fazem a primeira seleção. Uma lista tríplice é enviada ao presidente da República, que escolhe um deles. A partir daí, o Senado faz a sabatina. São os três Poderes participando da escolha. Mesmo assim, escolhem cada bomba… Onde está o erro? Nós não somos democráticos. Só fingimos ser. Somos amigos. Então, meu amigo pede pelo amigo dele, e eu atendo ao meu amigo sem nem conhecer o amigo dele.

Aí começa a sucessão de problemas.

Magistrado é um negócio danado, está ali com o direito da pessoa, que por vezes é a vida da pessoa. Você escolhe tudo: médico, dentista, engenheiro, costureira, mas juiz você não escolhe. Pode ser um preguiçoso, pode ser um burro. É aquele. E o que é que você faz? Nessa irresponsabilidade, desenvolveu-se uma advocacia de favor, para agradar ao juiz. Às vezes, não é nem dar dinheiro. Começa com pequenos favores no cartório, leva um biscoitinho, e o pessoal esconde uma petição e bota a outra na frente. O juiz não fiscaliza. E é assim que começa a corrupção dentro do Judiciário.

Há solução?

É preciso mudar a cultura desse país, mudar a cultura do jeitinho, do favor.

Sabe-se que filhos de ministros costumam advogar nos tribunais superiores, sem travas. Como lidar com isso?

Está cada dia pior. Eu comecei a falar isso há muitos anos e nem tinha o alcance do problema. São meninos. E está todo mundo rico. Eles oferecem o serviço, a pessoa está no desespero e termina cedendo. Eu nunca permiti. No meu gabinete, eles tentavam vir na base do “Tia Eliana”. Eu não os recebia. Eles vendem ilusão. Muitas vezes não têm influência nenhuma, mas a vendem. Alguns filhos de ministros vão para a advocacia pesada, ganham um bocado de dinheiro e, quando fazem um pé de meia bem recheado, entram para a magistratura através do quinto constitucional. Blindam-se através da magistratura. Viram ministros, desembargadores e ninguém os pega mais. Essa é a realidade.

O assédio era forte quando a senhora estava no STJ?

Continua forte. Recentemente recebi uma pessoa com uma grande causa no STJ que me disse que foi ao tribunal para a posse de um ministro. Essa pessoa foi abordada duas vezes por dois filhos de um mesmo ministro: “Somos filhos de fulano de tal. Se o senhor quiser, aqui está nosso cartão”. O que é isso?

A senhora viu as entranhas do Judiciário. O que presenciou de mais absurdo e por que essa caixa-preta não é aberta?

Eu vi muita coisa. A cultura do Judiciário é muito antiga, quase napoleônica. É a cultura de biombo, de esconder. O Judiciário é uma caixa-preta por tradição. Eu combati muito isso, quis mudar. O mundo está mudando, está transparente, as entranhas são puxadas e mostradas. Acabaram-se os segredos.

O Judiciário precisa de compliance?

Eu nem digo isso, porque é impensável ter compliance dentro do Poder Judiciário. No dia em que eu abrir a boca para dizer que defendo um mecanismo de compliance no Judiciário, vão me internar, dizer que fiquei louca de vez.

Então a caixa-preta não vai ser aberta?

Vai demorar. Passa pela mudança de cultura, o que leva tempo.

Como a senhora avalia o trabalho do CNJ hoje?

O CNJ hoje está um órgão burocratizado, cheio de processos, e a atividade censória vem sido deixada em segundo plano. O órgão está aparelhado. Está todo mundo light. Tem muita gente jovem que não quer se desgastar e está lá para fazer currículo.

A senhora já se referiu algumas vezes aos “bandidos de toga”. Eles ainda estão por aí?

Ah, estão.

E não serão investigados?

Não. Você acha que a Odebrecht levou 30 anos fazendo todas essas safadezas, ganhando tudo dentro do Judiciário como? Eu sou baiana, conheço a empresa. Eu comecei falando que a Lava Jato precisava chegar ao Judiciário. Foi assim até o Carlos Fernando Lima, procurador da força-tarefa da Lava Jato, me dizer que os advogados não queriam denunciar os juízes nas delações premiadas. Eles orientam o cliente a não denunciar os juízes. Só existe corrupto se houver corruptor. Quem é o corruptor de juiz? O advogado. Tem outro outro ponto: ninguém acredita em punição do Poder Judiciário. Nem eu acredito. Então, se o delator delata, abre-se um processo rápido, não acontece nada, mas o advogado honesto continua advogado e vira inimigo do juiz que foi delatado. E não só desse juiz, mas de todos os amigos do juiz, e do amigo do amigo do amigo. E aí o advogado fica sem poder advogar porque vai perder todas.

Seus críticos dizem que a senhora, apesar do discurso incisivo, é até hoje próxima de políticos como Paulo Maluf e o ex-senador Gilberto Miranda, ambos envolvidos em escândalos. O que diz disso?

Eles fazem parte de um clube que se desenvolveu no Brasil. Corrupção não é privilégio do PT. Apenas o PT se apropriou e instituiu isso como uma forma de perpetuação de poder, aparelhando todos os órgãos de Estado. Eu não conheço Paulo Maluf, nunca estive com ele, nunca pedi nada, nem ele me pediu. Não conheço Gilberto Miranda, nunca vi. É uma leviandade essa alegação, porque estive próxima até de outros políticos. Mas desses dois, nunca estive.

O que a senhora pode dizer hoje sobre o período em que foi corregedora nacional de Justiça?

A investigação do Judiciário não funciona porque é feita para não funcionar. Nas inspeções que fazíamos quando eu era corregedora do CNJ, íamos com técnicos da Receita Federal. Juízes não queriam mostrar a declaração de imposto de renda, mas acabavam apresentando. Resultado: patrimônio incompatível de milhões. Se não explica, abre-se uma sindicância. A investigação patrimonial, aliás, foi o grande problema que eu tive em São Paulo. O Supremo deu duas liminares para eu sair de lá. Foi como se dissessem: “Deixa aí, não mexe”. E eu saí. A legislação conduz muitos bandidos a se esconderem atrás da toga. É natural que se tenha proteção a juiz, mas a proteção demasiada, a blindagem total, isso não está certo.

Revista Crusoé



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