Por Carlos Mauro
Todos nós somos expostos, com mais frequência do que
gostaríamos, a imagens de pessoas mortas em genocídios, guerras, em fugas por
refúgio, em ataques terroristas e noutros cenários de morte ou assassinatos
coletivos. Estas imagens são terríveis com dezenas, centenas ou milhares de
mortos, muitas vezes, amontoados. Sentimo-nos mal. Contudo, a verdade é que,
apesar do sofrimento, rapidamente recuperamos desse sentimento e, na maioria
das vezes, pouco falamos sobre o assunto. A notícia corre na imprensa e pelas
redes sociais, cria-se, de alguma forma, uma certa interpelação coletiva mas,
logo depois, voltamos a ver principalmente fotos de pratos de comida e selfies no Facebook.
Nos últimos dias, temos
sido quotidianamente informados sobre um conjunto de mortes ocorridas durante o
percurso de fuga de refugiados que, desesperadamente, tentam entrar no
continente europeu. No início, as notícias eram tipicamente aquelas a que
estamos habituados, ligadas a mortes coletivas como, por exemplo, o caso das
dezenas de refugiados que morreram asfixiados dentro de um camião na Áustria. A
maioria de nós ficou triste, é claro. E seguimos o roteiro, mais uma vez:
sentimo-nos tristes por alguns momentos, tivemos alguma vontade potencial para
ajudar, sentimo-nos tentados a doar algum dinheiro, mas, passadas algumas
horas, começamos a esquecer o assunto. Era, afinal, mais um caso trágico com
muitos mortos, sem nomes e sem histórias específicas. Neste tipo de caso
pensamos mais no número de mortos do que nas vítimas propriamente ditas.
De um dia para o outro, no
entanto, houve uma reviravolta no sentimento das pessoas sobre a tragédia e o
sofrimento dos refugiados. As doações aumentaram vertiginosamente, as ofertas
para receber refugiados cresceram como nunca, os políticos mostraram-se mais
diligentes, e, de modo geral, a população tornou-se mais desperta para o
problema e mais conectada afetivamente com a situação.
Esta mudança drástica
ocorreu por causa da triste história da criança que morreu afogada durante a
busca por refúgio. Esta criança foi identificada como sendo o menino Aylan, que
tinha 3 anos, vestia uma camisa vermelha e calções azuis, que morreu
afogado e foi encontrado e fotografado numa posição de submissão ao seu
sofrimento. Depois, soubemos que o irmão e a mãe tinham, também, morrido nas
mesmas condições, mas o certo é que nos interessamos muito menos por eles.
O leitor poderá pensar que
me encaminho para criticar a nossa “hipocrisia” e a nossa suposta
suscetibilidade a sermos manipulados pela imprensa. Afinal, nos últimos anos,
temos sido bombardeados por imagens de milhares de pessoas mortas em situações
muito semelhantes, mas nunca antes mobilizamos tantos esforços como agora,
depois do caso Aylan. Mas não, não pretendo acusar ninguém de nada.
O que pretendo dizer é que
esta situação pode ser explicada pela ciência e pela economia comportamental
através do “Efeito da Vítima Identificável”, fenômeno descrito na última década
por alguns cientistas e economistas comportamentais, como, por exemplo, pelos
professores americanos Paul Slovic, George Lowenstein, Deborah Small e pela
professora israelense Tehila Kogut. Os estudos sobre este efeito têm revelado
uma grande assimetria na nossa tendência para ajudar em casos de vítimas
coletivas e em casos de vítimas identificadas. A tragédia recente é exemplar
neste sentido. Lemos e fomos confrontados com imagens de dezenas e centenas de
refugiados mortos, mas parece que acordamos para o assunto apenas depois do
caso Aylan. Inequivocamente, a probabilidade de agirmos e de ajudarmos de
alguma forma aumentou depois de termos tido acesso à história de Aylan, cujas
imagens correram o mundo, de modo viral.
O Efeito da Vítima
Identificável mostra-nos claramente como agimos nestas situações. Tentando
evidenciar o efeito de um ponto de vista científico, nas experiências mais
conhecidas, os participantes são separados em dois grupos diferentes e são
desafiados a responder sobre situações ligeiramente diferentes. Um dos grupos
lê a história de milhares de crianças que estão em situação de risco num país
muito pobre e, logo a seguir, os participantes são questionados sobre quanto
estariam dispostos a doar para ajudar. O outro grupo lê a história de uma
criança identificada que está em situação de risco no mesmo país e, logo a
seguir, os participantes, também, são questionados sobre quanto estariam
dispostos a doar para ajudar. Qual seria o resultado esperado? A maior parte
das pessoas diria que, seguindo a crença de que somos agentes racionais, os
participantes do grupo com milhares de vítimas doariam substancialmente mais do
que os participantes do grupo com a vítima única. No limite, poder-se-ia dizer
que o valor da doação seria o mesmo, pois as pessoas podem ter um valor para
doação e, quer seja para uma ou mil crianças, doarão o mesmo, pois é o que têm
disponível.
Contudo, o curioso é que as coisas não
ocorrem nada assim. Os participantes do grupo com os milhares de vítimas doam a metade do valor dos participantes do grupo
com a vítima única e identificada. Para um adepto da crença de que os agentes
econômicos são racionais, este comportamento não faz sentido. No entanto, este
é o comportamento que sistemática e previsivelmente exibimos. Temos a clara
tendência para nos ligarmos afetivamente a casos únicos e identificados de modo
substancialmente mais forte, do que a casos de tragédias coletivas, com
milhares de vítimas. Este efeito pode explicar a nossa passividade em casos de
genocídios e a nossa diligência em casos de uma vítima identificada na mesma
condição.
Temos que ter consciência
que o Efeito da Vítima Identificável pode ser utilizado para mobilizar as
pessoas para boas ou más causas. Contudo, assumindo que os cientistas e
economistas comportamentais seguem imperativos éticos, podemos afirmar que este
efeito abre um conjunto enorme de possibilidades para fazer o Bem. Algumas
ONGs, por exemplo, já estão conscientes disso e identificam o beneficiário da
doação, aumentando, assim, as suas receitas e a dimensão dos recursos afetos às
causas que representam.
O potencial de aplicação
deste efeito é grande. Podemos influenciar as decisões das pessoas de modo
muito eficaz, por exemplo, mudando a perspetiva do problema, identificando um
sujeito do conjunto de vítimas ou beneficiários. No caso específico dos
refugiados, podemos aproveitar a onda para estabelecer compromisso mais fortes
entre Estados e pessoas, enquanto durar o “efeito Aylan”. Obviamente, não
podemos correr o risco da banalização, mas seria importante que a imprensa
fosse sensibilizada para as possibilidades do efeito e, com mais frequência e
de forma responsável, se interessasse por casos únicos e identificasse as
vítimas. No fundo, que contasse uma história com a qual o público se pudesse
identificar afetivamente e agir.
Deste modo, talvez
conseguíssemos criar e desenvolver uma percepção do sofrimento coletivo mais
adequada e mais realista, criando condições para uma ação, individual e
coletiva, mais eficaz e mais consciente.
Carlos Mauro é professor da Faculdade de Economia da Universidade Católica Portuguesa - Porto. Diretor do Behavior, Economics and Organizations Laboratory – BEO LAB – Católica Porto, e Visiting Scholar na Wharton School – Universidade da Pensilvânia.